O documentário brasileiro OS MELHORES ANOS DE NOSSAS VIDAS (2003) e o iraniano THE HOUSE IS BLACK (1962) tratam de doença e isolamento social, e nos fazem refletir sobre o que vivemos hoje. De graça na internet.
Os dois filmes, dirigidos por mulheres, se referem a colônias de leprosos e, ainda que de maneiras muito diferentes, procuram resgatar a humanidade de seres condenados a viver à margem do mundo. Falemos um pouco de cada um deles.
Memórias de uma longa quarentena
O tema de OS MELHORES ANOS DE NOSSAS VIDAS é difícil: as memórias de um grupo de moradores remanescentes de um hospital para leprosos no interior de São Paulo. Se até a palavra “lepra” foi banida do convívio social, substituída pelo termo mais científico hanseníase, o assunto não parece dos mais convidativos para uma sessão de cinema. Mas o momento atual torna o filme ainda mais oportuno.
O que a diretora Andrea Pasquini logrou foi o milagre de nos abrir uma fresta para esse mundo de exilados e, com sensibilidade extrema, transformar nossa repulsa em interesse humano legítimo. O filme ganhou uma menção honrosa no festival É Tudo Verdade de 2003 e venceu a IV Mostra VideoSaúde, promovida pela Fiocruz.
O Brasil só perde para a Índia em número de portadores de hanseníase. A enfermidade tem baixo índice de contágio e hoje pode ser tratada em casa, com remédios perfeitamente acessíveis. Essas informações chegam no letreiro final do filme, desmistificando uma longeva crença na maldição da doença, que costumava ser vista como um “castigo dos céus”.
As memórias recolhidas no Hospital de Santo Ângelo, em Moji das Cruzes (SP), falam de um tempo em que os doentes eram caçados como bichos, separados definitivamente de seus entes queridos e condenados para sempre a um isolamento sem remissão. Muitos entraram no hospital ainda crianças, sabendo que só sairiam dali depois de mortos.
Seriam apenas fantasmas de uma época de intolerância se o documentário não resgatasse suas lembranças afetivas, seu persistente apego à vida e a doce aceitação que os fez encarar a longa quarentena como, afinal, os melhores anos de suas vidas. O regime teve períodos de verdadeiro campo de concentração, a ponto de inspirar uma revolução armada entre os internos. A sobrevivência das emoções se deu através de namoros platônicos, bailes de fim de semana e sessões de cinema num imenso auditório de 1000 lugares. Andrea Pasquini desfia tema após tema num roteiro primoroso, que evolui ao ritmo das vozes de seus personagens.
Os depoimentos se sucedem numa narrativa suave, intercalados por vinhetas impressionistas que identificam os ambientes e passam informações históricas bastante sintéticas. Não há closes de corpos mutilados nem qualquer sinal de exploração do sofrimento. Ao respeitar o tempo próprio das pessoas, Andrea restaura a dignidade delas, revela personalidades individuais que o abandono mais radical não foi capaz de apagar.
Várias gerações desfilam diante das câmeras, mostrando, por um lado, a evolução da mentalidade relativa à doença e, por outro, a transformação do hospital de casa de horrores em refúgio bucólico, que muitos, já podendo, não mais desejam deixar. Mesmo porque o exílio social, a partir da própria pele, os desaparelhou para o mundo exterior.
Por mais belas que sejam a fotografia de Hélcio “Alemão” Nagamine e a trilha musical de Ruriá Duprat e Eduardo Agni, OS MELHORES ANOS DE NOSSAS VIDAS jamais será motivo de simples entretenimento. É um filme triste e terno, que traz para perto de nós um mundo remoto e quase impensável. Comovidos diante daquelas histórias, reconhecemos a humanidade num limite e ganhamos uma sólida lição de amor à vida.
Veja o filme:
A casa escura
Infelizmente, o dia está acabando, / as sombras da tarde estão se estendendo. / Nosso ser, como uma gaiola cheia de pássaros, / está cheio de gemidos de cativeiro. / E nenhum de nós sabe quanto tempo vai durar. A estação da colheita passou, / o verão chegou ao fim / e não encontramos libertação. / Como pombas clamamos por justiça … / e não há nenhuma. / Esperamos a luz / e reina a escuridão.
Poema de Forough Farrokhzad
Uma matéria do The Guardian chamou minha atenção para THE HOUSE IS BLACK, curta-metragem feito numa colônia de leprosos do Nordeste do Irã em 1962. Foi o único filme realizado pela poeta Forough Farrokhzad, chamada “a Sylvia Plath iraniana”.
No curta, ouvimos a voz dela falando alguns de seus poemas, enquanto na tela desfilam imagens duras de pessoas muito deformadas pela hanseníase. “Não falta feiúra no mundo”, diz em off o produtor Ebrahim Golestan na abertura, “mas se os homens fecharem os olhos para ela, haverá ainda mais”. Seguem-se cenas do cotidiano dos internos, gente de todas as idades, uns mais, outros menos afetados pela doença. A maior parte das imagens são melancólicas, e o tom fica entre a súplica e o lamento. Num trecho, no interior de uma mesquita, um homem coloca nas mãos de Deus a sua sorte.
Segundo um artigo de Jonathan Rosenbaum, a autora disse certa vez a Bernardo Bertolucci que via a colônia de leprosos como “um exemplo ou modelo de um mundo prisioneiro da enfermidade e da pobreza”. Mas houve também quem enxergasse no filme uma metáfora da vida sob o tacão do xá Reza Pahlevi e de uma religiosidade extremada que levava ao conformismo. Em contraponto à oração do religioso, uma voz (também de Golestan) comenta cientificamente as características da doença, ressaltando que ela não é incurável.
Há também os momentos em que os internos são vistos em atividades menos lúgubres, como uma festa de casamento e um jogo de bola. Mulheres são vistas se maquiando e se penteando. Uma sequência encenada com meninos numa sala de aula antecede o cinema de Abbas Kiarostami e ilustra à perfeição a tese de que THE HOUSE IS BLACK foi um antecessor do chamado Novo Cinema Iraniano. Essa sequência conclui com a impactante revelação do título do filme, quando um menino é instado a escrever na lousa uma frase com a palavra “casa”. A casa, para eles, o seu mundo, era a colônia.
A montagem, também assinada pela diretora, não tem nada de naturalista. É rítmica, espiralada e tende ao ensaio poético. Esse tratamento serve para minimizar o envolvimento dramático e acionar mecanismos de reflexão e consciência.
Em seu curto tempo de vida, Forough Farrokhzad foi tida no Irã como deusa (pelos poemas) e como prostituta (pelo comportamento livre). Foi amante secreta do cineasta e escritor Ebrahim Golestan, de quem montou vários filmes. THE HOUSE IS BLACK foi o primeiro documentário assinado por uma mulher no Irã. De sua proximidade com os internos da colônia nasceu a decisão de adotar o menino Hossein Mansouri, um dos que aparecem na cena da escola (foto à esquerda).
Um de seus poemas, O Vento nos Levará, deu título e é recitado no filme homônimo de Kiarostami. Forrough morreu num acidente automobilístico em Teerã, em 1967. Tinha apenas 32 anos e era bela.
Veja o filme com legendas em espanhol (habilitadas no rodapé da tela):