Os documentários Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar, do baiano Henrique Dantas, e Na Dança! Doc, do paulista Roberto Gervitz, integram a programação do In-Edit Brasil – Festival Internacional do Filme Musical. Veja a programação aqui.
É doce dorivar
Um ebó cinematográfico. Um efó bem misturado. Um despacho artístico. Uma pajelança. Fico procurando por aí um meio de dizer o que Henrique Dantas preparou para Dorival Caymmi em Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar. Este é o terceiro filme sobre o “Buda Nagô” (como o definiu Gilberto Gil) a surgir nos últimos 18 anos, depois de Um Certo Dorival Caymmi (2002), de Aluisio Didier, e Dorival Caymmi, um Homem de Afetos (2019), de Daniela Broitman.
O baianíssimo Henrique, autor do impagável Filhos de João: O Admirável Mundo Novo Baiano e do impactante A Noite Escura da Alma, tomou uma vereda particular, paralela à da simples biografia. Juntou um bocado de gente que privou da companhia de Dorival – mas sem nenhum parente direto – ou que se vê como seguidores de sua marola musical para relembrar histórias prosaicas e dizer o que sentem diante da obra do mestre. Ah, sim, e para ler cartas dele e conjugar o verbo “dorivar”.
Quatro eixos principais norteiam o filme. Um deles é a espiritualidade de Dorival, consagrado como Obá de Xangô e apontado como mediador entre os dois lados do mundo. Outro é a relação atávica do compositor com o mar, quase onipresente em suas canções e em sua vida. Henrique celebra esteticamente essas duas facetas com a instalação de imagens de entidades do candomblé e oferendas à beira-mar para serem lambidas pelas ondas. As correntes de espuma também criam texturas sobrepostas aos materiais de arquivo e a outros elementos visuais.
O terceiro eixo é a forma como Dorival cantou as mulheres, sempre admiradas e cortejadas (apesar da bronca na Marina por causa da maquiagem, é bom lembrar). Por fim, o quarto eixo é a ênfase na negritude de Dorival, frequentemente minimizada quando se fala dele. Por conta disso, os participantes do documentário enveredam pelo tema do racismo e pelos preconceitos que geraram o estereótipo do baiano preguiçoso. Dorival compunha sem pressa e pintava com menos pressa ainda. Numa carta a Jorge Amado, considerou “não fazer nada” uma de suas obrigações. Compreender essa noção de tempo e de trabalho não é tarefa fácil para as mentes produtivistas do capitalismo.
Da mesma forma, o filme se interroga sobre a permanência da Salvador de Caymmi em meio à gentrificação, à folclorização e à “evangelização” da cidade atual.
O ensaio verbovisual de Henrique Dantas abusa um pouco das sobreposições (de áudios e imagens) e tem roteiro um tanto errático na organização dos temas. Mas não há como resistir à simpatia de gente como Tom Zé, Gil, Moraes Moreira, João Donato, Paloma Amado e outros tantos louvando o virtuosismo e a picardia de Caymmi.
A dança do mundo
Onde a língua não alcança, pode-se chegar com a música e a dança.
Essa poderia ser uma epígrafe para o documentário Na Dança! Doc, que integra a programação do Festival In-Edit. Roberto Gervitz (Braços Cruzados Máquinas Paradas, Feliz Ano Velho, Jogo Subterrâneo, Prova de Coragem) documentou um festival de danças étnicas promovido desde 2017 por sua irmã, Betty Gervitz, fisioterapeuta e dançarina que desenvolveu uma plataforma de dança e música de várias partes do mundo (conheça aqui).
Enquanto registrava as performances da edição de 2018 do festival, Roberto descobriu que o trabalho da irmã ia muito além do que ele próprio imaginava. Ao convocar imigrantes de diversas procedências para difundir sua arte em escolas de São Paulo, Betty estava formando um canal de conhecimento e valorização das diferenças culturais. Afinal, cada cultura tem seus gestos, movimentos e ritmos característicos, que se expressam mais que tudo na linguagem da dança. Para os imigrantes, é uma maneira de se religarem com suas raízes ao mesmo tempo em que as divulgam e as mesclam com outros padrões.
Os festivais têm sido celebrações de uma atividade permanente. A edição de 2018 se deu num belo casarão, onde se apresentaram músicos e dançarinos de Angola, Moçambique, Congo, Senegal, Líbano, Japão, Colômbia, Galícia e Brasil, entre outros. Não faltaram as danças beduínas e os rodopios de um derviche egípcio. Ao redor deles, a assistência não só observava, como tinha aulas de iniciação e ensaiava os movimentos, cada um no seu possível.
Roberto colheu testemunhos densos sobre a ambientação dos imigrantes no Brasil, as dores que deixaram para trás (mas inevitavelmente os acompanham no exílio) e a importância da dança como fonte de compreensão, esclarecimento e troca entre pessoas de nacionalidades e estéticas corporais tão diferentes.
O caldeirão cultural aferventado por Betty Gervitz, juntamente ao coordenador musical Gabriel Levy, é essencialmente dinâmico, uma vez que muitos participantes voltam aos seus países e outros chegam com seus sons e passos. A ação do Na Dança! se renova a cada ano, enquanto vai deixando nas escolas um rastro de interesse pela arte do que está aparentemente distante.
O filme de Roberto, em sua simplicidade e simpatia, com a bonita fotografia de Lúcio Kodato e a montagem vivaz de Manga Campion, faz o que era preciso para que a gente se apaixone pelo projeto.
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