Em mais uma prova da prevalência dos temas como critério na seleção de filmes desta sétima edição, o CachoeiraDoc abriu espaço ontem para um longa-metragem… de ficção. Amor Maldito é tido como o primeiro longa dirigido por uma cineasta negra no Brasil. Aos 73 anos, Adélia Sampaio vem tendo esse filme redescoberto pelas novas gerações, engajadas na militância cinematográfica pela diversidade sexual. A realização é de 1984, época em que lésbicas no cinema brasileiro só apareciam como tempero em pornochanchadas. Adélia, já então uma experiente produtora vinda do Cinema Novo, foi hábil em utilizar o chamariz para discutir a sério a intolerância da sociedade. Encontrando as portas da Embrafilme fechadas para seu projeto, ela o produziu em sistema de cooperativa.
Amor Maldito baseia-se num caso real. Uma mulher foi julgada em tribunal com a acusação de ter corrompido e levado ao suicídio sua ex-namorada, uma candidata a miss. Wilma Dias, à época conhecida como beldade de vinheta da Globo, interpreta a sensual Sueli, que se joga de uma janela logo no início do filme. A história de sua relação com Fernanda (Monique Lafond) é contada em flashbacks a partir do julgamento desta. A acusação sustenta a tese de que homossexualidade é crime contra a instituição familiar, enquanto a defesa argumenta que a ré tinha por Sueli um amor puro e verdadeiro, prova de sua inocência. No roteiro de José Louzeiro, existe ainda um triângulo amoroso que pode levantar suspeitas quanto ao desfecho do caso.
A encenação de Adélia Sampaio investe com apetite em diversos estereótipos, entre os quais os da moça bonita e fútil que quer fazer sucesso (Sueli), do pai pastor evangélico que na verdade é um fanático pervertido (Emiliano Queiroz), e do promotor que encarna o conservadorismo furioso. Uma cena particularmente incisiva mostra os dois advogados adversários confraternizando seu machismo em torno de fotos de Sueli nua. Embora tudo no filme pareça bastante datado, a grande ironia é que ele hoje ganha uma inesperada atualidade perante o avanço do fundamentalismo, a moral hipócrita de certas lideranças conservadoras, as reações homofóbicas em certos nichos da sociedade e a Justiça claramente exposta como farsa.
Os diálogos, inspirados nos autos do processo verídico, assim como a pontuação dramática das cenas do tribunal, soam duros e artificiais. O amor de Fernanda e Sueli é retratado em flashes de memória tingidos por uma sensualidade posada que certamente serviu para ajudar a vender o filme como pornodrama. Carlão Reichenbach e outros diretores da Boca do Lixo usaram esse tipo de artifício para tratar de assuntos dramáticos dentro do mercado da pornochanchada. Visto hoje, porém, Amor Maldito tende a ser desculpado por suas deficiências de concepção e realização, e festejado pelo pioneirismo e a coragem com que tratou do lesbianismo.
Vale ressaltar que, na realidade, a acusada teve um final bem diferente do que consta no filme. Segundo Adélia Sampaio, ela foi internada pelo pai numa clínica psiquiátrica.
Clique aqui para ver o filme inteiro no Youtube.
A programação de ontem contemplou também dois longas sobre os quais eu já havia escrito aqui no blog: A Noite Escura da Alma e Vozerio.
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