Conta-se que os espectadores de “O Almoço do Bebê”, em 1895, ficaram deslumbrados com a agitação das folhas ao vento no jardim dos Irmãos Lumière. O cinema produzia um milagre, o de captar o movimento vivo da natureza. Tenho a impressão de que Wim Wenders procurou reeditar isso em OS BELOS DIAS DE ARANJUEZ. Em 3D (vi o filme no Reserva Cultural de Niterói), a folhagem do jardim onde se passa a conversa de Fernando e Soledad ganha uma profundidade e uma vivacidade especiais.
O 3D serve também como metáfora para a materialização do texto literário. O escritor está na sala à máquina de escrever enquanto seus personagens conversam ali perto, no jardim. Ele às vezes datilografa as frases que o casal vai dizer em seguida, às vezes é o contrário: ele como que ouve os personagens antes de escrever. A escrita, afinal, é mesmo assim. Ora é o escritor que os cria, ora são os personagens que parecem criar a si mesmos e impor-se à imaginação do escritor. Da mente para o papel é um primeiro passo; do papel para as três dimensões do mundo concreto é outro que só o cinema pode dar.
Assim como o escritor, alterego de Peter Handke (que faz uma ponta silenciosa como um jardineiro), também o autor da trilha, Nick Cave, faz sua aparição no mesmo espaço cênico dos personagens. Faltou Wenders entrar disfarçado, por exemplo, de entregador de pizza.
Mas, afinal, do que trata essa peça de Handke? Sentados um diante do outro, Fernando e Soledad têm uma espécie de pacto narrativo: ele pergunta sobre o passado amoroso dela e suas relações com os homens. Ela responde com a condição de deixar tudo no campo da dúvida metafísica (“nossa conversa não pode ser somente de ‘sins’ e ‘nãos'”). Quando ele fala, é sobre outros assuntos, como uma certa visita a Aranjuez e microfenômenos do verão no campo. A lembrança de “O Ano Passado em Marienbad” pode vir aqui e ali, mas estamos a anos-luz da complexidade e da fascinação intelectual do filme de Resnais/Grillet.
Esta quinta parceria de Wenders/Handke é a coisa mais aborrecida que os dois já produziram juntos ou em separado. As memórias vagas e constatações inócuas da mulher soam pesadonas, inconsistentes e desarticuladas. As observações dele, por sua vez, parecem retiradas de uma enciclopédia da vida silvestre. Não há interação real nem uma legítima curiosidade de um pelo outro. Tudo está a serviço de uma digressão árida e um formalismo audiovisual pretensioso e vazio. As expressões terrivelmente entediadas do escritor talvez reflitam sua insatisfação com o que está saindo não só da máquina de escrever, como também das câmeras.
Resta dizer que não vale a pena ir a Niterói só pelo 3D desse filme. Mas vale muito para conhecer o complexo em que fica o Reserva Cultural, um belo e atraente lugar diante da Baía da Guanabara. Além das cinco salas de cinema, há restaurante, uma livraria Blooks e outras lojas.