Um pouco de Filme Livre

Nenhum evento ocupa as salas de cinema do CCBB por tanto tempo quanto a Mostra do Filme Livre. Este ano, a programação carioca começou em 29 de março e se estende até 24 de abril. É a 16 edição, o que faz da MFL uma das mostras mais longevas no calendário do CCBB. Para o público do Rio, é a única chance de tomar contato com uma parcela da produção que, fora dali, só circula em circunstâncias muito especiais. São longas, curtas e médias; ficções, documentários, híbridos e experimentais, geralmente feitos à margem de editais e grandes patrocínios.

O grande banquete dos independentes atualmente em cartaz abrange um respeitável total de 210 obras, entre inscritas/selecionadas e convidadas. A grande maioria estreia na MFL, embora algumas já tenham passado por festivais como os de Tiradentes e do Rio, outras até já estejam em cartaz (como Martírio), e outras ainda integrem uma retrospectiva em homenagem a Paula Gaitán.

Tive a oportunidade de conhecer agora – e comento a seguir – quatro exemplos distintos de filmes que cavam seu lugar com ferramentas bastante peculiares. Todos ainda terão uma exibição na mostra.

Em Super Orquestra Arcoverdense de Ritmos Americanos, uma big band de 55 anos de idade anima festas e bailes de debutantes no interior de Pernambuco. Ao mesmo tempo, escavadeiras e motocicletas vão alterando a paisagem do sertão. Os jegues continuam a transportar gente e puxar carroças, mas parecem mais tristes do que nunca. Um Nordeste em que muitas coisas se transformam e outras permanecem as mesmas é o tema obsessivo do cinema pernambucano atual. Sérgio Oliveira (Estradeiros, Praça Walt Disney, roteiro de Amor, Plástico e Barulho) acrescenta novas camadas de significados a essa cineantropologia.

Super OARA é um documentário impressionista, de contornos fugidios e estrutura errante, rodado em Arcoverde (PE). Vale-se quase sempre de vinhetas e anotações rápidas, às vezes frustrando alguma expectativa de extensão ou aprofundamento. Procura avidamente composições do quadro que evidenciem os contrastes entre a opulência e a carência sertanejas. Crianças mimetizam em suas brincadeiras as grandes obras de irrigação enquanto ainda precisam de latas para se abastecer de água. A imagem de um jegue comendo os restos de uma festa da elite pretende sintetizar uma metáfora abrangente.

O filme oscila entre a singeleza desses animais resignados e um desejo de espetáculo atendido pelas músicas e algumas performances de pantomima e folclore. Num dado momento, as duas vertentes se encontram num inusitado musical equino. Observação de uma cidade e ao mesmo tempo arquitetura de sentidos críticos e afetivos sobre ela. Divertimento e esquadrinhamento. Standards americanos e novena de São José.

Super Orquestra Arcoverdense de Ritmos Americanos tem reprise hoje (segunda), às 15h30.

O inquieto Dellani Lima, um dos artífices do conceito “cinema de garagem”, tem em Planeta Escarlate talvez o seu filme mais bem comportado do ponto de vista narrativo. Na interseção do thriller de terror com a ficção científica, casal se instala numa casa de campo e se sente ameaçado pelo ressentimento de moradores locais e pelo fantasma da ex-namorada do rapaz. Ao trauma das drogas se soma o temor pela aproximação do tal planeta escarlate, cuja aura só poupará os índios de se transformarem em “bombas psíquicas”.

Esse “Melancolia” marinado em cannabis cita sua senha já no estribilho da canção que abre o filme: “Quem é que precisa de uma fórmula precisa?”. Efetivamente, os gêneros se confundem numa trip de regeneração química, voyeurismo erótico e violência latente. Jonnata Doll, parceiro de Dellani na direção, ator principal e autor do argumento, e o músico Edson Van Gogh (no papel do caseiro Ciro) integram a banda Os Garotos Solventes, de Fortaleza. Têm em comum com Dellani um pé no punk rock. A visceralidade desse estilo musical, porém, não é transposta para o filme, a não ser por alguns gritos primais e uma sequência particularmente brutal perto do fim. Na maior parte do tempo, Planeta Escarlate é um elegante exercício de cinema, com uso expressivo da tela panorâmica e atmosfera legitimamente inquietante.

Planeta Escarlate reprisa dia 20, quinta, às 16h30.

Do cinema baiano, vivendo seu momento mais ativo e penetrante no século, vem o documentário Ridículos, assinado por Paula Lice, Rodrigo Luna e Ronei Jorge. As câmeras registram em regime de cumplicidade o encontro de quatro famosos palhaços baianos para recordar sua formação e treinar um novo companheiro. Ah, e para fazer muitas palhaçadas também.

O filme se afirma, assim, como uma espécie de teste: quanto o humor clownesco resistirá fora do contexto do picadeiro e sua plateia? É aí que as coisas se complicam. Se as performances de conjunto funcionam bem – particularmente o desembarque em looping de um carro e o banquete pastelão -, os solos palhaçais não rendem as risadas que era de se esperar. Talvez pelo fato de que a cumplicidade entre personagens e equipe não reverbere numa parceria criativa entre as duas linguagens. O filme está sempre aquém do que a ação poderia sugerir em termos de aproveitamento cinematográfico.

Resta, então, uma janela que se abre sobre os exercícios estafantes de quem pretende aprender e manter-se em forma para fazer rir. O suor do palhaço acaba sendo a melhor revelação.

Ridículos reprisa dia 24, segunda, às 17h.

Diário da Greve traz Guilherme Sarmiento filmando sozinho, basicamente com um celular. Em 1998, ele foi um dos diretores do longa coletivo universitário Conceição: Autor Bom é Autor Morto. Nesses quase 20 anos, passou de estudante a professor de cinema, assinando no caminho como corroteirista de Sudoeste e Tropykaos. Em 2015, dava aulas na Universidade Federal do Recôncavo Baiano quando uma greve de professores o paralisou por quase quatro meses. Guilherme resolveu, então, fazer uma paródia de “filme de garagem”. Passou a vadiar pela garagem do seu prédio em busca de alguma inspiração mais literal. Escolheu três palavras que definiriam esse modelo estético e de produção: “Cotidiano”, “Afeto” e “Corpo”.

Montado como um diário do seu período de grevista entre Salvador e Cachoeira, o filme se autodevora em ironia niilista e esterilidade plenamente assumida. Na verdade, o autor constrói um pequeno monumento performático ao seu fracasso em lidar seja com o cotidiano, seja com o afeto ou com o próprio corpo. O professor continua soando como aluno ao satirizar com voz pastosa clichês da teoria do documentário.

Em dado momento, a personalidade do grevista começa a se dividir, e um esboço de reflexão política a se insinuar. Ele não participa do movimento de seus pares e posa de alienado consciente da própria alienação. A paranoia de petista hostilizado por direitistas às vésperas do impeachment de Dilma resulta num desfecho mórbido com a participação do seu duplo fascista, com camisa da CBF e tudo. A confusão entre os dois lados talvez pretenda expressar uma descrença no processo político, mas no fundo revela somente o vazio de um projeto mal improvisado.

Diário da Greve reprisa dia 20, quinta, às 19h30 no CCBB e dia 8 de maio, às 21h, no Arte UFF.

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