Imagino que Sergio Muniz, 82 anos, esteja bem feliz com sua retrospectiva no É Tudo Verdade 2017. Não é uma revisão completa de sua obra, mas põe em foco momentos cruciais de sua carreira de documentarista e abre espaço para um filme que nunca teve antes uma exposição tão ampla. Trata-se de Você Também Pode Dar um Presunto Legal (1973), libelo político alheio ao contexto com o qual Muniz costuma ser identificado, o da Caravana Farkas (leia mais sobre o filme abaixo).
Nas décadas de 1960 a 80, Thomaz Farkas produziu um grande conjunto de documentários, em sua maioria empenhados em registrar as condições de vida e a cultura popular do Nordeste. Muniz foi um dos artífices daquele momento, produzindo, dirigindo ou montando diversos filmes. Alguns títulos fundamentais desse seu percurso estão na mostra do É Tudo Verdade.
A começar pelo seu primeiro curta, Roda & Outras Estórias (1965), apresentado como “Cinema de Cordel”. Estamos aqui tão próximos do cordel quanto de um pioneiro do videoclipe (cineclipe, no caso). Cinco canções de Gilberto Gil, todas de fundo político, são comentadas visualmente com gravuras e esculturas populares, somadas a arquivos documentais e sobras de edição de filmes da época, num trabalho que já apontava a aproximação da obra de Muniz à do cubano Santiago Alvarez. Em começos da ditadura militar, Roda soava como filme de protesto. Imagens do sertão, de operários da construção civil, da miséria urbana e da guerra do Vietnam traziam um valor de denúncia semelhante ao que Alvarez obtinha no seu Now!, feito no mesmo ano mas visto por Sergio somente dois anos depois.
Gil e Caetano estariam novamente na banda sonora de Sergio Muniz no inusitado De Raízes & Rezas, entre outros (1972). No centro desse média-metragem estão as entrevistas com um raizeiro (vendedor de raízes medicinais) do Ceará e uma velha rezadeira da Bahia. Mas o que mais chama atenção é o tal “entre outros” do título: uma vasta colagem tropicalista feita com sobras de outros registros da produção Farkas, sonorizados com fragmentos de canções (brasileiras e cubanas), poemas e áudios de filmes.
Através de uma suíte musical e política descontínua, marcada por interrupções bruscas de efeito brechtiano, esse filme faz um retrato caleidoscópico da vida e da morte no sertão (as raízes e as rezas funcionando aqui como metáforas). O mosaico sonoro constantemente sabota o mero envolvimento com as músicas e substitui a narração num fluxo veloz que exige do espectador atenção redobrada para captar os seus sentidos. Vejo aqui ainda um exemplo de ousadia estrutural a desmentir a noção corrente de que a Caravana Farkas era apenas o reduto de filmes didáticos e meramente expositivos.
Mais afeitos ao modelo etnográfico tradicional, os curtas Rastejador, s.m. e Beste não deixam de ter a marca distintiva de Muniz na maneira de organizar seu material. Ambos os filmes são de 1969 e protagonizados pelo caçador e rastejador baiano João Batista dos Santos. Falante, dono de uma prosódia toda peculiar e extremamente hábil no trato com os recursos do sertão, em Rastejador, s.m. Batista se converte em historiador e explicador de regras de sobrevivência na caatinga. Rastejadores de animais de caça como ele emprestaram sua sabedoria também ao rastejamento de bandidos, notadamente cangaceiros. Tornaram-se, então, fontes preciosas de história pública.
Muniz e nós todos devemos um agradecimento a Maria Bonita por ter impedido que Lampião matasse Batista, conforme seu relato. Correção: quem foi ameaçado de morte por Lampião foi outro rastreador que aparece no filme.
Em Beste, acompanhamos, passo a passo, Batista construir um conjunto de arco e flecha medievais, a beste, enquanto ouvimos a narração da chegada do homem à Lua pelo programa de rádio A Voz da América. Fica patente o contraste entre, de um lado, a tecnologia mais avançada e o alcance da mídia globalizada da época, e de outro, o labor solitário e artesanal de Batista, com nada mais que as mãos e uma faca, em torno de uma arma há muito em desuso. Poético, etnográfico e político, Beste é um filme sobre a distância espaço-temporal entre duas práticas, condensada na belíssima imagem final de Batista apontando sua beste para o céu.
Uma curiosidade à parte: esses dois filmes de 1969 partem de definições enciclopédicas de “rastejador” e “beste” para superá-las por meio da experiência concreta e da ressignificação dos gestos associados àquelas palavras.
Ainda seguindo com os filmes da programação, teremos dois curtas enfeixados na série “Instrumentos da Música Popular Brasileira”. A Cuíca e O Berimbau, ambos de 1967, são simpáticas introduções e demonstrações das propriedades dos respectivos instrumentos, feitas por ases de cada um.
Andiamo in’Merica (1980), por sua vez, um dos dois longas de Sergio Muniz, é um abrangente dossiê sobre a imigração italiana no Brasil. Fala-se de práticas rurais, arquitetura, costumes, preconceitos, repercussões do fascismo na colônia, etc. Com cenas rodadas em São Paulo, Rio Grande do Sul e na região italiana do Veneto, Andiamo in’Merica adiciona complexidade ao modelo do documentário histórico. A situação dos camponeses italianos que vieram para o Brasil na virada dos séculos XIX e XX é confrontada com a de parentes que ficaram na Itália até então (fins dos anos 1970), comprovando que pouco mudou desde então. No Brasil, acontece o mesmo, inclusive em relação ao trabalho infantil. Mas aqui são encontrados tanto resquícios de rudimentaridade, como sinais de ascensão social. Lá como cá, há fartura e há carência.
Da mesma forma, há histórias de exploração e há histórias de resistência. De uma parte, os imigrantes italianos foram usados como mão de obra dócil em substituição à dos ex-escravos num projeto camuflado de embranquecimento do país e na consolidação do capitalismo brasileiro, sobretudo no campo da cafeicultura. De outra parte, as lutas trabalhistas vindas na bagagem dos anarquistas italianos seriam seminais para a constituição de um pensamento sindicalista entre nós.
É preciso destacar que Andiamo in’Merica foi realizado justamente no período em que os metalúrgicos do ABC faziam o movimento que mudou a face da política brasileira com a criação do PT. Os ecos extrafílmicos não devem ser desprezados.
Quanto à linguagem, Muniz combina procedimentos de entrevista e observação com uma narração em off tradicional e curiosas vinhetas ficcionais em que os atores subitamente se transformam em narradores dentro da cena.
Uma variedade ainda maior de recursos de linguagem vamos encontrar no já citado Você Também Pode Dar um Presunto Legal. Esse filme, cujo título pretendia ser um alerta para o espectador, é o resultado de uma reunião de materiais, entre 1971 e 1973, para um libelo que denunciasse o Esquadrão da Morte como um “ensaio” para os horrores da ditadura militar. No roteiro escrito com Francisco Ramalho Jr., cabia um pouco de tudo: notícias de jornal, fotos de execução, transcrição de depoimentos sobre tortura, cenas de peças de teatro-documentário, canções “mensageiras”, atores nos papéis do delegado Sérgio Fleury (chefe da famigerada Scuderie LeCocq) e do procurador Hélio Bicudo. Cenas da condecoração de Fleury pela Marinha, não divulgadas na época, foram obtidas clandestinamente de uma TV pelos bons ofícios de Vladimir Herzog. Enfim, uma peça de resistência política com ingredientes documentais e típico sabor do período.
Amigos de Sergio o aconselharam a não fazer exibições públicas na época, temerosos de que o título fosse sumariamente aplicado a ele. Mais de 30 anos depois, a partir de uma cópia VHS, Muniz aplicou efeitos digitais de legibilidade e recolocou, discretamente, o filme em circulação. Eu fui um dos contemplados com uma cópia em 2006. Outro foi Jean-Claude Bernardet, que enviou a seguinte mensagem ao diretor: “… estou impactado. Você demonstra uma coragem e uma liberdade na feitura do filme que me fazem pensar que se teus filmes tivessem circulado mais e se você tivesse feito mais filmes, a história do documentário brasileiro poderia ser diferente. O mal estar que estou sentindo neste momento (ainda bem que daqui a pouco vou praticar ioga) não provém só do ressurgimento deste passado no meu quarto. Provém também de que este filme ressalta o silêncio político no qual, com raras exceções, se mantém o cinema documentário, hoje. A relação que você estabelece entre grande capital, estrutura política e repressão, hoje é tabu”.
A frase “se você tivesse feito mais filmes” refere-se ao fato de que a filmografia de Sergio Muniz se compõe de apenas oito curtas, três médias, dois longas, dois programas Globo Repórter e cinco trabalhos que ele classifica como vídeos. Sua contribuição em muitos outros filmes da Caravana Farkas, porém, atesta um legado bem mais amplo. Ainda nos anos 1970, ele viveu uma guinada de 180 graus em relação aos seus anos iniciais em agências de publicidade paulistas. Teve ativa participação no Comitê de Cineastas Latino-americanos e, na segunda metade da década de 1980, dedicou-se à Escola de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, em Cuba, da qual foi o primeiro diretor docente a convite de Fernando Birri. Desde então, desenvolveu projetos de memória cinematográfica para o MIS-SP e foi assessor de cinema do Memorial da América Latina, entre outras atividades de curadoria e gestão. Não filmou mais profissionalmente.
O que não está no festival
Coisas importantes ficaram de fora nessa pequena retrospectiva do É Tudo Verdade. Da época da Caravana Farkas, por exemplo, dois curtas se fincam nas raízes santistas de Sergio Muniz. A Bolsa de Café e um galpão de catação de café de Santos são os cenários, respectivamente, de Cheiro/Gosto: O Provador de Café e Um a Um, ambos de 1976. O primeiro reconta a chegada do café ao Brasil e faz um pequeno tratado sobre os sentidos do paladar e do olfato. Tem sabor pitoresco ao enfocar o ofício e as idiossincrasias de antigos provadores de café. Sergio indaga, entre outras coisas, quais os seus outros gostos e cheiros preferidos. Embora a abordagem seja neutra e séria, o efeito é inevitavelmente cômico, tal a compenetração e a singeleza dos personagens. Um a Um tem pegada mais marxista, pois enfoca as condições de trabalho estafantes e a baixa remuneração das catadoras de café para exportação. A organização do trabalho se dá a ver no soturno ambiente de um galpão que remete às catacumbas medievais.
Projeto ainda mais singular é o que Muniz desenvolveu junto com a antropóloga Maria Isaura Pereira de Queiroz a respeito de uma comunidade messiânica na localidade baiana de Santa Brígida. Na verdade, Sergio herdou de Paulo Gil Soares, em cima da hora, a direção de O Povo do Velho Pedro (1967). Esse primeiro longa do diretor oferece uma visão impressionante do funcionamento da comunidade sob a tutela espiritual e política do beato Pedro Batista e em clima de Idade Média. A fotografia de Affonso Beato, reminiscente de Os Fuzis, é estupenda. Uma série de problemas técnicos restringiu a circulação desse filme, o que deve explicar sua ausência na retrospectiva.
Nos anos 1970, quando o Globo Repórter era alimentado por trabalhos de grandes documentaristas, Sergio Muniz assinou dois programas produzidos pela Blimp Filmes: Vera Cruz, a Fábrica de Desilusões (1975) e A Loucura Nossa de Cada Dia (1976). Desses dois, conheço o primeiro, uma radiografia do funcionamento da produtora. Entre depoimentos, cenas de bastidores do estúdio e muitos trechos de filmes comentados, a Vera Cruz é apresentada como um projeto econômico-cultural da elite paulistana, onde reinavam o luxo e os altos orçamentos. Os contratados desfilavam perante os acionistas, enquanto o cão Duque era mais bem remunerado do que a atriz Ruth de Souza. As disputas entre brasileiros e italianos teria sido um dos fatores a contribuir para o precoce fracasso comercial da empreitada.
Após uma longa pausa na carreira de diretor nos anos 1980 a 2000, Sergio Muniz realizou somente um vídeo nesse início de século XXI. Amizade (2009) é um ensaio composto de depoimentos especulativos em torno desse sentimento que une o diretor a gente como Fernando Birri, Thomaz Farkas, João Silvério Trevisan, Marilena Chauí, Othon Bastos, Jean-Claude Bernardet e outros. A cada um, sem avisar previamente qual o tema da entrevista, Sergio pediu que falasse sobre a amizade.
Não sei se ele voltará a filmar em breve – espero que sim –, mas a obra que se pode vislumbrar nessa retrospectiva montada por Amir Labaki já deixa patente uma personalidade autoral marcante. A par da curiosidade etnográfica pelos processos da criação popular e sua transmissão de uma geração a outra, bem como o interesse em desvendar os mecanismos do capitalismo brasileiro na exploração da classe trabalhadora, Sergio Muniz não descuida de um pensamento investigativo sobre a narrativa cinematográfica. Cada filme seu tem um método visível e peculiar de penetrar naquele pedaço de realidade. Alguma coisa que é sempre política, humanística e atenta às singularidades dos personagens e de seus contextos.
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