NA ILHA no Canal Curta!
Uma faca raspando a pedra definiu para Daniel Rezende toda a montagem de Cidade de Deus. O fato de Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo ser narrado e supostamente filmado pelo personagem liberou a montadora Karen Harley para o “erro”. A qualidade das memórias de Petra Costa conduziram Marília Moraes a editar Elena de maneira semificcional.
Comentários como esses fazem a delícia de quem gosta de cinema no documentário Na Ilha. Os diretores Julia Bernstein e Vinícius Nascimento, ambos montadores, convidaram 20 colegas a discorrerem sobre seus métodos, escolhas e idiossincrasias na ilha de edição. Assim descobrimos que Jordana Berg (Últimas Conversas) ensina seus filhos a editar desde a mais tenra infância (“eu vivo em estado de montagem”) e que Sergio Mekler (Campo Grande) tira os sapatos, as meias e cruza as pernas em lótus sobre a cadeira antes de começar a mexer na sua timeline.
São várias gerações, de relativamente jovens como Eduardo Serrano (Bacurau) e Natara Ney (O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas) a veteranos do porte de Eduardo Escorel (Terra em Transe), Mair Tavares (O Anjo Nasceu) e Vania Debs (Baile Perfumado). Giba Assis Brasil (Ilha das Flores) abre o filme e Mair o encerra com considerações sobre os tempos da moviola e do digital. Sobre o assunto, Mair deixa uma frase lapidar: “Antigamente a gente pensava antes de cortar. Agora a gente corta e depois pensa”.
Cada um deles não fica mais de 5 minutos em cena, mas é o suficiente para trazer observações luminosas sobre seu trabalho. Questões como intuição, ritmo, fluxo (e antifluxo), continuidade, dramaturgia e manipulação aparecem com destaque nas palavras dos montadores. No seu trabalho, tudo está sujeito a estilos e circunstâncias. Enquanto Pedro Bronz (A Farra do Circo) afirma a necessidade de defender com vigor suas opções perante o diretor, o experiente Máximo Barro conta que desistiu de retirar seu nome dos créditos do clássico A Margem quando ficou convencido de que as escolhas do diretor Ozualdo Candeias eram melhores que as suas.
Escorel tem mais uma oportunidade de reafirmar sua paixão pelo material bruto, onde ele costuma garantir que todo filme já está contido. Joana Collier (Paixão e Virtude) declara que aprendeu com o saudoso Ricardo Miranda, a quem Na Ilha é dedicado, a transferir o seu conhecimento de montagem da cabeça para o corpo. Pedro Bronz, por sua vez, assegura que “tudo já está no (Dziga) Vertov. É só reinventar com as questões da contemporaneidade”.
Cada um dos filmes citados nesta resenha foi o único escolhido para ilustrar as falas do respectivo montador. Nisso está um dos grandes acertos de Na Ilha, pois os trechos evidenciam com precisão a gramática da montagem, seja ela pulsante como em Cidade de Deus, seja aparentemente inexistente como nas cenas escolhidas de O Anjo Nasceu. A montagem, procedimento que tantas vezes passa despercebido dos espectadores – e até dos críticos – fica aqui sublinhada de maneira rápida, mas perspicaz.
Outra qualidade de Na Ilha é a sua própria montagem, assinada também por Julia e Vinícius. Longe de qualquer contradição com seu tema, o filme aposta na síntese e em cortes motivados por associações de ideias e imagens. Ao fim de seus enxutos 75 minutos, resta a impressão de que existe ali um material bruto digno de uma série. Basta montar.
Na Ilha ainda terá reprises no Canal Curta! nos dias 28/8 às 10h; 29/8 às 15h e 30/8 às 22h40.