Dois olhares sobre a imigração

Notas sobre os filmes PORTO PRÍNCIPE e O ANEL DE EVA

O Haiti não é em Santa Catarina

Separadas por muitas décadas e por uma enorme diferença de contextos, Porto Príncipe, no fundo, conta duas histórias de imigração. Bastide (Diderot Senat) é um dos muitos haitianos que emigraram para o Brasil depois do terremoto de 2010 e das guerras que se seguiram. Junto com outros desterrados africanos, ele chega a Santa Catarina e cruza seu caminho com Bertha (Selma Egrei), bisneta de imigrantes alemães que administra uma velha propriedade na serra catarinense. Sozinha, ela oferece um emprego temporário a Bastide.

A amizade que começa a germinar entre os dois é vista como uma ameaça por Henrique (Léo Franco), filho de Bertha, que transpira prepotência e racismo. O roteiro de Marcelo Esteves não faz rodeios para apontar francamente o clima de xenofobia e discriminação reinante entre os brancos do lugar. Clima que pode mesmo chegar a uma covarde agressão física.

A disseminação dos discursos de ódio e a ascensão da extrema-direita no Brasil – e em especial nos estados sulinos – são o pano de fundo para Porto Príncipe, modesta parábola sobre aceitação e auto-estima. Nesse sentido, é exemplar a forma como Bastide confronta Bertha a respeito de um paralelo entre os imigrantes alemães e os haitianos. De fato, um paralelo pode ser feito, mas nunca uma comparação.

O longa de estreia de Maria Emília de Azevedo é simples na execução, quase simplório mesmo. A encenação é um tanto rígida, e a estrutura da narrativa é episódica. Ainda assim, a equação dramática funciona razoavelmente. Selma Egrei exala beleza madura e plausibilidade no papel dessa mulher altiva que ouve música clássica, lê Thomas Mann no original e não admite que lhe digam o que fazer. O haitiano Diderot Senat faz um bom contraponto com sua atuação introspectiva mas resoluta. Destaco, ainda, as boas participações de Monica Siedler como a neta de Bertha.

>> Porto Príncipe está nos cinemas. 

Os porcos sempre voltam

Você pode não entender por quê, mas a vinda de nazistas para o interior do Brasil ao fim da II Guerra ainda provoca o interesse de realizadores brasileiros. Esse é o contexto histórico de O Anel de Eva, drama rural ambientado nas redondezas de Cáceres (MT). Pesquisas dos anos 1980 confirmaram a passagem de oficiais nazistas pelo Mato Grosso. Há mesmo uma pesquisadora, Simoni Dias, que sustenta em livro a tese (bastante improvável) de que Hitler teria simulado seu suicídio e vivido seus últimos anos numa cidade daquele estado.

No filme de Duflair Barradas, produção legitimamente matogrossense, Suzana Pires vive Eva Vogler, filha adotiva de família alemã. Após a morte do pai, ela recebe uma caixa misteriosa com fotografias e um anel com insígnia nazista. Isso vai deflagrar uma investigação de suas origens, levando-a a uma fazenda administrada pelo também descendente de alemães Martin Hirsch (Odilon Wagner).

Já na primeira cena do filme, Eva está colada ao seu rifle, dando caça a porcos selvagens que destroem as lavouras. O rifle vai reaparecer muitas vezes como uma extensão do corpo da moça enquanto ela enfrenta as ameaças que advirão. Eva é a heroína que fará tudo com as próprias mãos, sem ajuda da polícia nem de ninguém.

Por trás do thriller há uma história de busca de identidades alternativas. Ao passo que Eva sonda sua condição de mestiça – em paralelo a sua égua preferida – e é excluída pelo irmão legítimo, a sobrinha (Laíze Câmara) procura afirmar sua sexualidade namorando uma professora. Sim, conto nos dedos os filmes brasileiros recentes que não têm uma relação lésbica.

Nem tudo se amolda bem no roteiro de Eduardo Ribeiro e Pedro Reinato. Pontas ficam soltas, e o encaminhamento da ação resulta implausível no seu ato final. O fato de a professora estar dando aulas justamente sobre a “fabricação” de crianças arianas puras durante o III Reich parece uma coincidência forçada. A moça sabe alemão, mas pronuncia “Lebensborn” como “Libensborn”. Embora os atores deem conta do recado na maior parte do tempo, os diálogos ora fluem com naturalidade, ora soam “escritos” demais.

O Anel de Eva arrisca-se ao anacronismo sob o pretexto de que “o passado não dá sossego”, como diz Eva a certa altura. Os porcos sempre voltam, e estamos assistindo à resiliência da extrema-direita entre nós. Mas a extração atual já não comporta laços diretos com o nazismo.

>> O Anel de Eva está nos cinemas.

Deixe um comentário