Cuidando de pássaros e de crianças

TUDO O QUE RESPIRA e A HOUSE MADE OF SPLINTERS concorrem ao Oscar de longa documentário

Entre o céu e a terra

Quando estive em Délhi, em 2005, uma das visitas mais impressionantes que fiz foi a um hospital de pássaros que ficava nos fundos de um templo jainista. Muitas dezenas de aves estavam alojadas em grandes gaiolas e sendo submetidas a tratamento em instalações que não se caracterizavam exatamente pela higiene. As coisas parecem bem mais organizadas na pequena clínica dos irmãos Saud e Nadeem, ex-fisiculturistas devotados ao resgate de milhafres pretos (um tipo de ave de rapina) feridos ou impossibilitados de voar. Eles – homens e pássaros – são os protagonistas de Tudo o que Respira (All That Breathes), um dos favoritos ao Oscar de longa documentário.

Os milhafres e sua fome insaciável ajudam a reduzir os lixões de Nova Délhi. O pensamento mágico dispõe ainda que alimentá-los gera indulgências espirituais. Saud, Nadeem e o ajudante Salik se arriscam nas operações de resgate e batalham para obter fundos com vistas à construção de um hospital mais bem equipado.

O idealismo dos rapazes é demonstrado pela labuta incessante e por suas humildes reflexões a respeito. “Somos um pequeno band-aid numa cidade profundamente ferida”, diz um deles. Ainda assim, não compartilhamos os detalhes do seu trabalho com os passarões. O diretor Shaunak Sen parece mais interessado em observar os dois irmãos às voltas com a infra-estrutura da clínica e pintar um quadro mais geral a respeito da imensa capital indiana, especialmente do bairro onde eles vivem.

Os milhafres estão despencando do céu em número cada vez maior devido às mudanças climáticas. Délhi está mais e mais caótica e avassalada pelo lixo, a poluição e as intempéries. Um meio-ambiente calamitoso tanto para humanos quanto para os animais – enfim, para tudo o que respira.

Shaunak Sen esmera-se esteticamente em panorâmicas lentas que transitam entre o céu (domínio dos pássaros e pontos de fuga) e o chão entulhado de dejetos, onde os bichos rastejantes tentam sobreviver e os milhafres vêm bicar seus alimentos. Esse movimento frequente para cima e para baixo tem um sentido filosófico que pretende conviver com a abordagem da vida prática dos três cuidadores.

No pano de fundo, notícias da violência religiosa na cidade elevam a temperatura do filme, mas não o suficiente para tirá-lo de uma certa lassidão, nem tampouco desfazem a impressão de algo construído em excesso. Por sua vez, a mensagem de que todas as formas de vida sobre a terra se equivalem e merecem a mesma atenção soa ingênua, apesar de verdadeira.

>> Tudo o que Respira está na plataforma HBO Max.


Leiam as resenhas de outros indicados ao Oscar de longa documentário que já publiquei:
Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft
Navalny


A casa da tristeza

No Leste da Ucrânia, uma casa de acolhimento recebe carinhosamente crianças separadas da família durante processos de custódia. São como órfãos de pais vivos. Não pela guerra, que praticamente não é referida no filme, mas por problemas de alcoolismo e violência doméstica. O título de A House Made of Splinters, um dos concorrentes ao Oscar de longa documentário, pode ser traduzido como “Uma Casa Feita de Estilhaços”.

O diretor dinamarquês Simon Lereng Wilmont adota uma abordagem puramente observacional, auxiliada apenas por esparsos comentários em áudio de uma assistente social. As crianças ficam ali por um máximo de nove meses, quando então devem voltar ao lar, serem adotadas ou transferidas para um orfanato. Nenhuma das opções parece agradar plenamente aos meninos e meninas. Na casa de acolhimento eles e elas vivem um cotidiano misto de inocência, ternura e também violência – esta contida nas brincadeiras prediletas, mesmo entre os melhores amigos. E também pequenas transgressões.

É curioso que o filme não procure contextualizar esse caldo contraditório em relação à realidade fora da casa. O encerramento naqueles limites, se por um lado concentra o foco nas interações entre as crianças e na virtual ausência dos pais, por outro despreza fatores culturais e políticos que estão no pano de fundo.

Algumas cenas de despedidas e solidão são emocionantes, e há ali uma câmera atenta às reações mudas das crianças. Esse teor de sensibilidade deve ter valido a Wilmont o prêmio de melhor direção no Festival de Sundance. No entanto, o filme aos poucos vai se tornando um tanto repetitivo e limitado em sua dinâmica dramática. A experiência resulta mais triste que esperançosa, já que, como é explicado, o ciclo de desditas tende a se repetir de pais para filhos.

Tenho para mim que esta indicação pela Academia visou mais prestigiar a Ucrânia do que reconhecer as qualidades visíveis, mas nada extraordinárias, do documentário.

>> A House Made of Splinters não foi lançado comercialmente no Brasil.

Trailer legendado em inglês:

Um comentário sobre “Cuidando de pássaros e de crianças

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