O prazer de morder o pescoço do cinema

NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO 

O título trazido de um poema de Fernando Pessoa é apenas a primeira referência culta do novo filme de Patricia Niedermeier e Cavi Borges. Não Sei Quantas Almas Tenho combina a já conhecida vertente do filme de viagem da dupla com a aventura pelo cinema de gênero e a aproximação ao universo gótico romântico que alimenta as histórias de vampiro.

No centro da fantasmagoria está o vampiro Nicolau (Jorge Caetano), poeta e bibliófilo que vaga no tempo desde o Romantismo – foi amigo de Rimbaud e Wittgenstein – em busca da mulher amada. Cansado de “atravessar a eternidade sozinho”, ele finalmente a encontra em Nina (Patricia), cientista fascinada por elementos químicos, que se deixa seduzir pela química estabelecida entre os dois. De alguma forma, esse (des?)encontro ecoa e expande a relação obsessiva vivida pelos dois atores em Reviver.

O processo de sedução se estende por vários cenários e citações. Como de praxe em seus filmes, Cavi e Patricia se inspiram pelos lugares para onde viajam. Assim, além das praias cariocas, esse filme teve cenas “vampirizadas” em locações deslumbrantes do Maranhão e de Portugal, culminando com um casamento celebrado na famosa Capela dos Ossos, na lusitana Évora. O Gabinete Português de Leitura, no Rio, e os espaços sinuosos do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia de Lisboa são outros dispositivos cênicos explorados com maestria pela fotografia de Fabricio Motta e a montagem de Paulo Vasconcelos.

Depois de abduzida por Nicolau, e de viver uma cena de possessão na qual Patricia se agiganta, Nina vai se transformar numa sensual mordedora de gente. Com a característica peculiar de agir em salas de cinema. Assim é que o vampirismo típico de toda cinefilia vai ganhar uma figuração bastante original. A conduta de Nina, porém, desagrada Nicolau, que há muito deixou de matar e se nutre de outra maneira. Um vampiro vegano, existencialista e dotado de consciência social não é coisa com que se esbarre a toda hora.

O contraste entre criador e criatura anuncia um destino trágico para o casal. Desde O Sétimo Selo que a morte se apresenta numa praia em frente a um tabuleiro de xadrez. O jogo de vida eterna, posse da alma alheia e morte, tão caro à tradição romântica, ganha aqui referências a Fausto, Madre Joana dos Anjos, Asas do Desejo e até Amos Oz (“nós vivemos até morrer a última pessoa que se lembra de nós”).

Não Sei Quantas Almas Tenho é o filme de maior impacto visual e sonoro do casal Borges-Niedermeier. O aproveitamento sugestivo de locações, gadgets e figurinos dá um upgrade na produção de custo modesto, filmada em distintas etapas ao longo dos últimos três anos. As fusões, justaposições e trucagens criam imagens de natureza fantástico-poética, enquanto a extensa trilha musical adensa a pátina gótica-chique. Com direito a uma versão bem apropriada de Béla Lugosi’s Dead, hit do grupo britânico Bauhaus pela banda carioca Leela.

Enfim, um filme de cinefilia e de risco estético que se estrutura ali mesmo enquanto vai sendo feito. Sem compromisso com o mercado, mas demonstrando que a Cavídeo não cessa de progredir nos cuidados com o acabamento e no prazer de morder o pescoço do cinema.

>> Não Sei Quantas Almas Tenho está nos cinemas.

 

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