Corpos proibidos na igreja

Notas sobre o documentário brasileiro TODA NOITE ESTAREI LÁ e a ficção francesa DISFARCE DIVINO

Dois filmes em cartaz esta semana lidam com a política de gênero das igrejas. Pessoas transgênero enfrentam ou driblam interdições para professar sua fé. No Brasil de verdade, uma mulher trans luta para ter acesso a uma igreja neopentecostal. Numa Paris ficcional, descobre-se que um padre recém-falecido era mulher.

Mel quer entrar no culto

Mel Rosário, estrela do documentário Toda Noite Estarei Lá, é uma figura carismática, que desafia estereótipos a torto e a direito. Mulher trans e testemunha de Jeová, ela também militava por Lula Livre e pelo PT. Um dia foi arrastada para fora da igreja neopentecostal que frequentava perto da sua casa, em Vitória (ES). O pastor não aceitou que ela se dissesse apossada pelo Espírito Santo. Desde então, Mel foi proibida de frequentar os cultos, barrada por seguranças na porta. Ela resolveu, então, entrar na Justiça e fazer protestos toda noite diante da igreja.

As diretoras Suellen Vasconcelos e Tati Franklin a acompanharam entre 2017 e 2022, tanto nas vigílias quanto nas audiências, assim como na vida privada. Sua casa e seu salão de beleza Mel Coiffeur são cobertos de inscrições relativas a Jeová. Ela escreve “Apocalipse” pelos muros da cidade em letras caprichadas de emérita cartazista. Eis, enfim, uma personagem suculenta, que se expressa com fluência e verve pelos seus direitos e contra a supressão de liberdades em vários níveis. Quando o filme foi concluído, Mel tinha 57 anos e ainda brigava nos tribunais por um lugar no interior da igreja.

Ainda que não esteja presente em todos os momentos decisivos, Toda Noite Estarei Lá captura as impressões de Mel Rosário perante a decisão do STF de criminalizar a homofobia, a apocalíptica eleição de Bolsonaro em 2018, uma festa de aniversário da mãe dela (que a chama pelo masculino) e a realização de um importante sonho de consumo. Com isso, consolida um perfil bem razoável da cabeleireira destemida.

Pena que suas ações à frente da igreja, que constituem o principal chamariz do documentário, não sejam bem distribuídas na estrutura da narrativa. Passam como apenas mais um dado do seu cotidiano, ganhando mais destaque nos isolados planos finais.

Com a câmera interditada diante da porta da sala de audiências, o microfone registra alguns diálogos pitorescos no campo da transfobia. É uma das pequenas (ou temporárias) vitórias com que o filme se conforta, tal como Mel.

O padre feminino

Entre os muitos segredos guardados nos cofres da Igreja Católica, quem sabe não haverá alguns como os que nos são revelados em Disfarce Divino (Magnificat)? Quando um estimado padre da diocese de Paris vem a falecer, descobre-se nele um corpo feminino. É preciso evitar o escândalo, mas a curiosidade parece falar mais alto. Instala-se uma investigação sobre as origens do Padre Pascal e a forma com que ele conseguiu enganar a todos durante décadas de bons serviços a sua paróquia.

Baseado em romance de Anne-Isabelle Lacassagne, o filme de Virginie Sauveur se nutre não só do perfume de escândalo, mas principalmente da semântica do filme policial. Uma rivalidade se estabelece entre Charlotte (Karin Viard), a chanceler da diocese, e um padre encarregado de executar o testamento (Patrick Catalifo). Charlotte faz sondagens por conta própria, motivada talvez por um segredo que ela mesma carrega em relação ao pai do seu filho.

Karin tem uma atuação esplêndida como essa mulher workaholic que não hesita em procurar um grupo de ciganos a fim de esclarecer fatos ligados à identidade de Pascal e a sua própria vida. Assim, ela carrega o filme para territórios a princípio inimagináveis. É uma virtude que o roteiro consiga, afinal, juntar todas as pontas, ainda que de modo bastante romanesco.

Ao fim e ao cabo, o filme pretende discutir a proibição de mulheres no sacerdócio católico. Mas acaba também implicando outra pergunta: de que servem os corpos numa profissão religiosa que lhes veta fazer o que lhes impõe a Natureza (também divina, supõem)? Essas questões aparecem de maneira superficial, mas estão lá em diálogos bem construídos e uma direção de atores muito eficiente.

Vale a pena aguardar a cena em que Viriginie parece citar diretamente o prólogo experimental de Persona, de Bergman. Afinal, embora em outro nível, trata-se aqui também de identidades em trânsito.

>> Toda Noite Estarei Lá e Disfarce Divino estão nos cinemas.        

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