Um rapto perfeito e um apocalipse frustrante

Notas sobre os filmes RAPTO e A ORDEM DO TEMPO

Minha filha dos outros

Nem eu, nem os psicólogos e psiquiatras aludidos no filme sabemos ao certo o que se passa na cabeça de Lydia, a personagem central de Rapto (Le Ravissement). Mas é tão intrigante acompanhá-la em sua deriva obsessiva. O longa de estreia da francesa Iris Kaltenbäck, escrito por ela mesma, transpira maturidade e senso de progressão dramática.

A atriz Hafsia Herzi, também diretora elogiada, empresta um tom ao mesmo tempo cool, triste e psicótico a Lydia, uma devotada parteira que acaba de ser abandonada pelo namorado. Ela se refugia, então, na relação profunda que mantém com a amiga Salomé (Nina Meurisse), que está grávida. Acompanha (ou vivencia, seria melhor dizer) a gestação e o parto difícil, criando a partir daí um apego excessivo à bebê da amiga. Depois de um flerte com o motorista sérvio Milos (Alexis Manenti), Lydia vê na criança um ensejo para prender o rapaz. Cria uma vida falsa, marcada por inconsequência infantil, até o ponto de cometer o crime que dá título ao filme, entre outros menores.

Rapto tem material de sobra para psicanalistas. A síndrome de Lydia não envolve a crueldade, por exemplo, de Nazaré Tedesco, a famosa ladra de filho alheio da novela Senhora do Destino. O trabalho de parteira, embora, como ela diz, fosse mais focado nas mães, engendra um vínculo vicário com os bebês. A depressão pós-parto de Salomé abre uma janela de oportunidade para que ela possa alimentar um afeto real. Ao mesmo tempo, o sequestro da pequena Esmée tem uma função prática em sua vida amorosa. As duas razões – o sentimento e o oportunismo – se confundem na personalidade incipiente e opaca de Lydia.

Alexis Manenti está igualmente perfeito no papel do homem que se deixa apanhar pela suposta paternidade, mas acaba suplantando essa motivação. Pode causar espanto a onisciência com que ele narra a história em voz over, algo que será explicado perto do desfecho. À exceção de uma incongruência temporal na cena decisiva em hotel do litoral, tudo nesse filme está no lugar certo e se apresenta no momento certo.

>> Rapto está nos cinemas.

Tempo perdido

A iminência do fim do mundo nunca foi tão aborrecida como em A Ordem do Tempo (L’Ordine del Tempo), o novo filme da veterana Liliana Cavani. Se tivesse de passar por aquele momento, eu jamais gostaria de estar com esse grupo de burgueses numa casa de praia, à espera de que um asteroide gigante colidisse com a Terra. Vários deles são físicos e podem avaliar o estrago que vai advir se os observatórios estiverem com razão. Por isso trocam ideias sobre o tempo, o impacto provável e o que farão com essas derradeiras horas de vida folgada.

É inevitável lembrarmos de Melancolia, de Lars Von Trier. Por contraste, claro. Enquanto a obra-prima dinamarquesa realçava a alienação de um grupo de personagens isolados do resto do mundo e encenava o pavor de uma comunidade diante da perda de seus rituais e de sua segurança, A Ordem do Tempo patina na banalidade subintelectual. Os amigos discutem os aspectos mais triviais da situação, festejam um aniversário, fumam maconha, dançam ao som de Leonard Cohen… E o pior, usam a possível catástrofe como motivo para confissões de infidelidade e revelações sobre o tal amor verdadeiro. Telenovela barata.

Há um esboço patético de expansão do quadro social mediante a empregada peruana que teme pelos filhos deixados em sua terra natal. Mas esse subplot é rapidamente descartado. E quando alguém lhe pergunta se tem uma foto do filho e ela prontamente tira uma do bolso do avental, aí dá vontade de mandar os roteiristas para o fim do mundo, literalmente.

No elenco, a curiosidade maior vai para Angela Molina (de Esse Obscuro Objeto do Desejo e Carne Trêmula) no papel de uma freira que não se abala com a ameaça do apocalipse.

Liliana Cavani é uma autora de filmes poderosos e controversos, como O Porteiro da Noite e A Pele. É uma pena ver seu nome ligado a um drama insosso e diletante como esse.

>> A Ordem do Tempo está nos cinemas.

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