Algumas ausências refrescantes saltam aos olhos em CORPO ELÉTRICO. Uma delas: não há romantismo nos amores de Elias (Kelner Macêdo), jovem estilista de uma pequena fábrica de confecções no centro de São Paulo. Belo exemplar de bofe gay, Elias é um animal em estado de caça permanente. Uma aura de inocência envolve suas investidas sobre os possíveis parceiros, mas nada reverbera como álibi romântico – nem ciúme, nem posse, nem apego. Se isso bem representa uma característica dominante do amor gay ou somente um caso específico, não sei dizer.
Outra ausência importante é a de uma narrativa de progressão, seja dramática ou cômica. O que vemos é uma crônica, uma série de observações sobre o modo de vida e os desejos mais imediatos de um grupo de personagens. O cotidiano desprovido de valor dramatúrgico, os encontros de puro desfrute, as conversas sem rumo definido ou utilidade descritiva é que preenchem cada sequência do longa de estreia de Marcelo Caetano. Sua inspiração veio do poema “I Sing the Body Electric”, de Walt Whitman, mas o filme resultou em parente próximo e citadino de “Boi Neon”.
Não há tampouco um personagem principal, uma vez que Elias, embora ocupe o maior tempo de tela, atua mais como catalisador de grupos do que como eixo de uma ação individual e própria. Elias é o homossexual visto não como alguém especial ou transgressor, mas como figura plenamente inserida numa paisagem urbana e proletária, onde cabem também imigrantes, drags e casais hetero. A sequência da saída da fábrica (foto no alto), inusitada versão do filme inaugural dos Irmãos Lumière, ilustra, a meu ver, a pauta básica do filme: pintar um retrato coletivo em que os corpos se prestam em igual medida ao trabalho, à festa, à interação e ao sexo. Um contraponto aos impulsos de intolerância e conservadorismo vigentes na sociedade brasileira atual. Uma bolha utópica, talvez.
Em seu descompromisso com os cânones do cinema de restauração gay – cujos personagens buscam redimir sua opção sexual pelo sentimental ou o poético – ,CORPO ELÉTRICO é delicadamente fútil e amorosamente cru. A intimidade obtida nas trocas entre os atores, com diálogos que exalam autenticidade, é um fator de sintonia irresistível do espectador sem preconceitos com aquela usina de energia afetiva submetida às regras do capitalismo periférico.
Esse filme me impactou como dar de cara com um muro de pedra. E depois da pancada, me afastar e ver um lindo desenho grafitado naquele muro. Cenas lindas com vida dura e real. Nada de sonhar romântico e de “esperar” soluções da narrativa. Como a carta do Mundo, no tarô (no mitológico representado por Hermafrodita), o filme termina para voltar ao começo, cíclicos e apenas preenchido pelas experiências vividas pelos atores que são personagens tão sutis e reais como cada um de nós, nosso vizinho, nosso destino e nossa trajetória. “Canto porque o momento existe. Não sou alegre nem triste, sou poeta…”: poesia concreta!