Uma bela fatia de vida queer

TUDO O QUE VOCÊ PODIA SER             

Quem procura tramas densas, conflitos e personagens em transformação vai se frustrar com Tudo o que Você Podia Ser. Em compensação, encontrará uma fatia de vida queer com autenticidade rara no cinema brasileiro.

Nem quero colocar o foco naquilo que o filme mais destaca no seu release de apresentação, qual seja o ambicionado caráter de “manifesto sobre o cuidado, a amizade e o pertencimento”. Vejo mesmo uma certa dose de idealização na forma como tantos filmes sobre comunidades LGBTQIAP+ dissolvem a realidade do dia a dia em celebrações de afeto, solidariedade e alegria supostamente ininterrupta. Esse filme de Ricardo Alves Jr. (Elon Não Acredita na Morte) tem isso também, mas passa ao largo da pieguice e do olhar paternalista. Uma ar de sinceridade radical dá concretude às quatro personagens sob o céu de Belo Horizonte.

Elas se encontram para a despedida de Aisha (Aisha Brunno), que está de partida para fazer Ciências Sociais em São Paulo. Igui (Igui Leal) também vai emigrar em breve para um doutorado em Berlim. Willa (Will Soares) é artista drag exuberante e um tanto mitômana. Bramma (Bramma Bremmer), a mais novinha, ainda sofre com a rejeição da mãe a sua transexualidade.

Não é à toa que cada personagem carregue o nome da própria atriz, todas vindas do meio teatral de Belo Horizonte. O roteiro de Germano Mello agencia a personalidade de cada uma para a composição final. Daí que o espectador seja levado a não distinguir o que seria ficção e documentário no que lhe é oferecido na tela. Cada uma veste sua interpretação com tal legitimidade que a gente mergulha com tudo nas poucas horas em que as vemos conviver.

Enquanto o quarteto alterna a lida com suas questões individuais e a união para a festa de despedida, passamos por muitas paisagens emocionais. A relação de Bramma com sua mãe e com um diagnóstico de HIV, assim como as experiências de homofobia dão o toque mais dramático. Mas há também muito humor nas conversas e interações das meninas, levadas com uma fluência e uma veracidade que nenhum roteiro de ferro seria capaz de sugerir.

A canção de Lô e Márcio Borges que dá título ao filme falava por metáforas da resistência à ditadura. “Com sol e chuva você sonhava / Que ia ser melhor depois”… “Você não quis deixar que eu falasse de tudo / Tudo o que você podia ser”. Aisha, Bramma, Igui e Willa trocam o depois pelo agora e tentam viver o possível da melhor maneira possível. Não há como negar-lhes nossa simpatia.

>> Tudo o que Você Podia Ser está nos cinemas. 

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