Tiradentes: “Açucena”, “Vagalumes” e “Ilha do Sol”

La vie en rose

O primeiro longa da Mostra Aurora foi um documentário de observação que parece ter sido feito quase que à revelia de seus personagens. Uma realidade vista pelas bordas, pelas frestas, pelos cantos das cenas. Talvez essa descrição faça Açucena parecer até mais interessante do que é na verdade.

Açucena é uma personagem fictícia, inventada por Dona Guiomar Monteiro como seu alterego infantil. Aos 68 anos, ela comemora todo ano o seu sétimo aniversário, que é sempre os sete anos de Açucena. A família toda se envolve na preparação da festa. Dona Guiomar é um caso psicanalítico tratado como brincadeira de criança. Sua casa é toda pintada de rosa e povoada por mais de 100 bonecas (nenhuma preta, embora estejamos na periferia de Salvador). As bonecas são vestidas por uma costureira, e sua dona tem especial predileção por aquelas que “falam”, como papagaios de plástico. No quintal, um cercadinho abriga esculturas de Branca de Neve e os sete anões, entre outras figuras.

O diretor Isaac Donato mantém uma atitude oblíqua perante seu objeto. Filma conversas casuais cujo sentido, em boa parte do tempo, escapa a quem não conhece o contexto da família. Capta imagens fragmentadas, refletidas em espelhos ou à distância, como se a decisão de não intervir implicasse em também não mostrar com clareza.

Eu percebi nitidamente essas intenções, mas não consegui me engajar num exercicio quase sempre inócuo e enfadonho. Fica a cada espectador a decisão de ver ali o patético de um adulto infantilizado ou o possível esboço de retrato de uma mulher fantasiosa.

Duas faces ocultas do Rio

Com seus jardins projetados por Burle Marx, o Parque do Flamengo é um dos cartões postais do Rio de Janeiro. Durante o dia, é área de recreação povoada por banhistas que o atravessam rumo à praia, ginastas, desportistas, famílias e turistas. Quando a noite cai e os postes altos lançam sua luz mortiça sobre as árvores, o parque se transforma. Creio que pela primeira vez vemos sua face noturna no curta Vagalumes, de Léo Bittencourt em parceria com Juliano Gomes.

Outras formas de vida circulam esparsamente entre as sombras. São moradores de rua que pernoitam no parque; gente que caminha, arrasta um colchão, se banha ou mesmo celebra sua pequena cerimônia religiosa. Em algum ponto, homens se encontram para fazer sexo. Em outro, uma mulher chega para alimentar os gatos, que dividem com os ratos e os grilos a fauna noturna do local.

Léo Bittencourt, um dos melhores diretores de fotografia em atividade no Brasil, emprega seu talento na captação das imagens em condições de luz adversas, mas com excelente resultado. A observação se faz tanto à distância quanto em proximidade, insinuando estratégias habilidosas de acercamento do local e dos personagens.

Ilha do Sol é dedicado a Luz del Fuego, a dançarina que criou naquele lugar o primeiro reduto naturista no Brasil. No curta assinado por Lucas Parente, Rodrigo Lima e Walter Reis, a ilha é cenário de outro tipo de performance. Um homem (Walter Reis) desenha sobre uma pedra uma figura composta de sol e serpente (signo este que também remete a Luz del Fuego). De vez em quando, posa para a câmera em esgares primitivos. O ritual se conclui com uma imagem que parte da ilha e se expande até enquadrar todo o planeta no espaço, acompanhada de um texto-lamento em idioma indígena.

O caráter experimental do filme dispensa interpretação além de sabermos pela sinopse que se trata de um grafismo ameríndio. A ausência de referências míticas à Ilha do Sol faz crer que ela foi escolhida apenas por sua localização exótica e próxima a municípios degradados como São Gonçalo e o próprio Rio de Janeiro. Fica o registro de uma obra de land art.

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