Vladimir vê “Santo Daime”

Os Índios Zoró – Antes, Hoje e Depois?, de Luiz Paulino dos Santos, e Santo Daime – Império da Floresta, de André Sampaio, exibidos na recente Mostra de Cinema de Tiradentes, integram o quarteto Encanteria, série de filmes sobre religiosidade brasileira produzido pelo pernambucano Tiago Melo. Sobre o primeiro, escrevi em post anterior. Quanto ao segundo, vale dizer que é uma introdução competente ao universo dessa religião singular que usa como principal “sacramento” uma bebida psicoativa extraída de plantas amazônicas.

O documentário de André Sampaio não pretende ser investigativo sobre o funcionamento das igrejas e comunidades daimísticas, nem sobre o perfil dos seus frequentadores ou “soldados”. A palavra fica restrita a poucos mestres, alguns deles discípulos diretos do fundador, Mestre Irineu, e do grande disseminador, Padrinho Sebastião. Enquanto as imagens desvendam a fabricação do chá e a estética e movimentação dos rituais, contando com tomadas deslumbrantes da natureza amazônica, os depoimentos desfiam a história do Daime. O filme faz um trajeto do Acre, próximo à fronteira com a Bolívia, ao Amazonas e ao Rio de Janeiro. Nesse percurso, deixa claro como o Daime vai ampliando seu sincretismo e somando a umbanda a sua “nova leitura do Cristianismo”.

Outro mestre, este do documentário, assistiu a Santo Daime e escreveu o seguinte texto, que o blog publica em primeira mão:

Um mestre e seu discípulo

por Vladimir Carvalho

Leio no providencial blog de Carlos Alberto Mattos o quanto foi simpática e tocante a presença do veterano Luiz Paulino dos Santos na apresentação de seu filme Índios Zoró – Antes, Hoje e Depois? na Mostra de Tiradentes. Deste documentário, Mattos escolheu um dos seus “planos” como o melhor de toda a mostra – um inesperado mergulho do próprio Paulino nas águas de um rio –  chamando ainda a atenção para a peculiaridade desse velho cineasta. Não à toa, o filme é produzido e montado por André Sampaio, pertencente à nova geração de cineastas, que realizou, há poucos anos, Estafeta, belíssimo perfil de Luiz Paulino, recuperando os principais lances de uma carreira das mais dignas do nosso cinema.

Agora, e também não por acaso, assisto por deferência especial de seu autor a uma cópia do novo filme de André Sampaio, Santo Daime, Império da Floresta. Trata-se de algo de notável beleza plástica e poesia humana, numa escala que vem caracterizando o trabalho desse jovem realizador. O tema, muito provavelmente, é fruto da amizade e companheirismo que ligaram Sampaio a Luiz Paulino, este hoje encanecido e barbudo oitentão, que tem vivido nas últimas décadas afastado das hostes do cinema e militando em intensa experiência com o Daime.

Fato é que, sensível e perseverante, André realizou o seu mergulho não num rio, mas na cultura do chamado povo da floresta, mais exatamente aquele segmento que segue a doutrina, se assim pode-se dizer, do Santo Daime, uma manifestação de religião dita popular que mistura, sincreticamente, influências das culturas indígena, negra e branca. Pouco escapa ao seu olhar e a sua câmera esperta. Tudo vai tomando corpo à nossa vista, desde a colheita da planta milagrosa no âmago da mata virgem, que dá nome ao afamado chá, o seu preparo em rústicas engenhocas até o momento ritual em que é ministrado por seus sacerdotes, vestidos a caráter, e que atendem a numerosa comunidade quase toda vestida de branco, os homens inclusive engravatados. Tudo transcorre nesse momento com rigoroso aparato litúrgico e invejável ordem e disciplina.

A despeito da beleza dos enquadramentos, da luz caprichosa que se espraia e se diferencia em cada ambiente, criando inegável clima poético que emana ora da paisagem e dos rios, ora da fauna e da flora, o realizador permanece isento, revelando-se também paciente ouvidor nas entrevistas que conduz. E assim, mais uma vez, confirma a sua inegável inclinação para o cinema documentário, já prenunciada desde os tempos do curso de comunicação da UFF. Santo Daime, tenho certeza, será importante tanto para leigos como para especialistas.

Vladimir Carvalho

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s