Festival do Rio: “Memória”

Recomendo a quem for ao festival algumas medidas essenciais: lembre-se de levar o seu comprovante de vacinação, que pode ser o certificado digital do ConecteSUS ou o comprovante em papel. Sem isso, a entrada nos cinemas não será permitida. Chegue de máscara e mantenha-a cobrindo o nariz e a boca durante todo o filme. Procure guardar o maior distanciamento possível entre as poltronas ocupadas.

A relação entre sons e imagens sempre foi intrigante nos filmes de Apichatpong Weerasethakul. Um certo realismo sonoro frequentemente dialoga com suas imagens calmamente fantasiosas. Mas a crítica e os estudiosos concentravam sua atenção mais no campo visual e no aspecto sobrenatural, na maioria das vezes deixando o som de lado. Em Memória, ele parece querer corrigir essa desatenção, forçando-nos a considerar em primeiro lugar os sons.

Antes de mais nada, lançou mão de uma partitura de frequências binaurais* que acompanha o filme inteiro, podendo ser ouvida de acordo com o dispositivo de reprodução utilizado. O efeito é de um hum subliminar que subjaz a todos os outros sons.

Filmando pela primeira vez fora da Tailândia, Apichatpong ambienta o filme na Colômbia. Em visita a Medellín, uma especialista em orquídeas (ofício atribuído a personagens de vários filmes do diretor) está pesquisando sobre fungos e bactérias quando começa a ser sacudida por ruídos sem explicação, ouvidos somente por ela. Numa das melhores cenas do filme, Jessica (Tilda Swinton) tenta descrever os bangs que ouve a um editor de som. Ela recorre a imagens visuais, num esforço obviamente inglório, uma vez que os dois campos, embora complementares no cinema, não podem ser convertidos um ao outro. Curiosamente, os estrondos que ouvimos não se parecem exatamente com o que ela tenta caracterizar.                  .

Jessica apela também a uma médica em mais uma tentativa inútil. Visita sua irmã internada num hospital de Medellín, uma vez que hospitais e enfermidades não podem faltar num filme de Apichatpong, cujos pais eram médicos. Passa ainda por um centro de arqueologia, onde se recompõem ossadas encontradas numa escavação. Por fim, Jessica tem um longo encontro com um pescador que entende a linguagem dos macacos, morre toda vez que dorme e é capaz de comunicar suas memórias auditivas para essa interlocutora tão especial.

Desta feita, o fantástico só se manifesta de verdade em três sequências: a morte onírica do pescador, uma cena de carros piscando e soando o alarme espontaneamente que lembra Holy Motors, e o desfecho que pode ter sido inspirado pelo edifício que “decola” no filme Em Busca da Vida. Afinal, Jia Zhang-ke é um dos produtores de Memória. No resto do tempo, a chave é quase naturalista, não fossem os estampidos que irrompem nos ouvidos de Jessica (e nos nossos), retirando-a do real e deixando-a perturbada e absorta.

O espectador fica relativamente livre para suprir as explicações que faltam. Os ruídos de Jessica seriam uma doença psíquica? Um eco de memórias suas ou alheias? Um medo da deterioração como a que atinge as orquídeas? Um fenômeno metafísico que aflora especialmente nela? Afinal, por que ela encontra duas versões do mesmo Hernán (Juan Pablo Urrego e Elkin Díaz) depois de saber que a primeira nunca existiu?

Entre as muitas pistas ou despistas lançadas, somam-se ainda as ameaças terroristas e a militarização da Colômbia, um paralelo com os conflitos tailandeses que frequentam o cinema do diretor. Numa cena no centro de Medellín, o estouro da descarga de um ônibus faz um passante atirar-se ao chão como para se proteger de tiros.

Para os amantes do slow cinema e os fãs incondicionais dos enigmas do cineasta, Memória é um prato cheio. Os longos planos silenciosos e imóveis convocam à experiência do passar do tempo e à criação de expectativas quanto a uma magia que é frequentemente negada. Mas este não é um filme que agrade a todos os que apreciaram outros mais sensuais e menos insondáveis como Meu Tio Boonmee e Eternamente Tua.

* Frequências binaurais são ondas sonoras que cada ouvido recebe numa frequência ligeiramente diferente, disso resultando a percepção de um som incomum. A experiência de Memória foi concebida para salas de cinema, daí que a reprodução de versões digitais compactadas em equipamentos mais rudimentares pode não surtir o efeito pretendido. Agradeço a Gabriel Perrone os esclarecimentos sobre esse assunto.

Nota: Apichatpong editou um livro homônimo com fotos, desenhos, correspondência, diário e histórias colhidas em suas viagens à Colômbia a partir de 2017. Neste link há o acesso (“look inside”) para ver algumas páginas.

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