Truffaut, crítico dos críticos

Foto: Pierre Zucca

Em 1955, pouco antes de passar à realização, François Truffaut era um dos mais ácidos críticos de cinema da França. Um ano antes, tinha publicado seu famoso texto “Uma certa tendência do cinema francês”, que dinamitava o chamado cinema de qualidade dos anos 1940 e 1950. Pavimentava o caminho para a renovação que viria mais adiante com a Nouvelle Vague. Para isso, era necessário desqualificar o cinema clássico e “literário” até então predominante.

Mas Truffaut não era impiedoso somente com os cineastas estabelecidos. Fazia o mesmo em relação a seus colegas críticos, como demonstra esse texto extremamente cáustico publicado na revista Arts em julho de 1955. Apesar da virulência e das generalizações, não há como negar que muitos de nós, críticos, ainda hoje nos reconhecemos em certos pontos do ataque de Truffaut.

Os Sete Pecados Capitais da Crítica – François Truffaut

Fala-se sempre das estrelas e dos cineastas, dos gostos e desgostos de uns, das manias de outros. Nas margens do cinema, entretanto, existe uma profissão ingrata, laboriosa e mal conhecida: a de “crítico cinematográfico”. O que é o crítico? O que ele come? Quais são seus hábitos, seus gostos, suas manias? O artigo que se segue tem como objetivo apresentar melhor esse artesão desinteressado que trabalha na sombra das salas ditas escuras.

O aparato financeiro e publicitário do cinema e o prestígio das estrelas são tamanhos que a crítica, ainda que unanimemente desfavorável, seria impotente para brecar a marcha para o sucesso de um filme ruim com grande orçamento. O crítico só é eficaz a respeito dos pequenos filmes ambiciosos, mas sem estrelas.

Citarei dois exemplos opostos que representam dois “casos-limites”: Le Pain Vivant e A Estrada da Vida [LaStrada, de Fellini]. O destino desses dois filmes dependia unicamente da opinião da crítica. O primeiro foi unanimemente espinafrado, o que teve como conseqüência interromper a exibição. Jean Mousselle, diretor de Le Pain Vivant, está distante de conseguir dirigir outro filme.

Com A Estrada da Vida – de que sabemos que bateu todos os recordes de “ocupação das salas” -, sem a crítica não se teria mantido em cartaz mais de três semanas; em vez disso, vai ter um retorno de dez ou quinze vezes o que custou.

Como a influência da crítica só é exercida sobre um filme entre vinte, estaria na ordem das coisas que a crítica cinematográfica fosse a mais livre, portanto a mais inteligente. Vamos ver que não é o caso e como isso se dá.

Ignorância da história

1) O crítico se deleita na ignorância total da história do cinema. É fácil constatar isso em virtude do remake. Se o remake for anunciado, em caráter oficial, o crítico (para parecer erudito) escreverá que o antigo filme foi “retomado” “plano por plano”, o que jamais se produziu. Se o remake não for anunciado, o crítico não perceberá isso. (Exemplos: Lure of the Wilderness, de Negulesco, era o remake de L’Étang Tragique, de Jean Renoir; La Flèche Brisée, de Dmytryck, o de Sangue do meu Sangue, de Mankiewicz).

Aliás, o crítico, antes de redigir sua resenha, consulta freqüentemente as “histórias do cinema”: como estas abundam em erros, ele os copia. No mês passado, vários colegas, entre eles Jean Dutourd (Carrefour) e François Nourissier (NNRF) atribuíram o Vulcano, de Dieterle, a Roberto Rossellini. Simplesmente haviam encontrado essa falsa informação na História do Cinema, de Georges Sadoul. Imagina-se que, se copia erros materiais, o crítico não se repugna em repetir por conta própria pontos de vista que não valem mais que a documentação que os acompanha. Foi também Georges Sadoul (Les Lettres Françaises) quem atribuiu ao grande chefe-operador Robert Burks a paternidade de Disque M para Matar.

2) O crítico de cinema ignora não apenas a história de sua arte, como também sua técnica. Quantos deles sabem o que significa “um raccord no eixo” ou uma “whip pan”? Claro, não são obrigados a ser muito sábios sobre isso, mas por que fingir conhecer alguma coisa? Alguns exemplos:
Georges Charensol (Les Nouvelles Littéraires) espantava-se que Os Homens Preferem as Louras fosse exibido numa tela normal; para ele, era um filme em cinemascope. Meu ilustre colega deveria saber: a) que esse filme foi filmado antes do cinemascope; b) que se tivesse sido filmado em cinemascope, não poderia ser projetado de outra forma.

O filme de Hitchcock Festim Diabólico comporta única e exclusivamente cinco planos; Disque M para Matar, do mesmo Hitchcock, comporta cerca de quatrocentos, o que não impediu Louis Chauvet (Figaro) de escrever: “Disque M para Matar é uma peça policial filmada como Festim Diabólico, de um fôlego só, ou quase isso”.

Mostrei a vários de meus colegas esta outra recente frase de Louis Chauvet; como ninguém conseguiu encontrar uma explicação para ela, entrego-a à perspicácia dos leitores: “Acrescento que um diretor preocupado com cinema puro [?] teria provavelmente preparado, depois explorado, de forma mais enérgica os episódios angustiantes por meio de uma outra disposição das iluminações [?] e sem prejuízo para a autenticidade”. Louis Chauvet talvez esteja confundindo o diretor com o chefe-eletricista…

Balzac contra Frison-Roche

3) O crítico define-se por sua ausência total de imaginação, caso contrário faria filmes em lugar de discuti-los. Daí o desprezo que professa pela imaginação dos outros. Quantas vezes não observamos estas palavras sob sua pena: “Salvo uma breve pesca ao atum, nada de interessante neste filme”, ou “O autor deveria ter renunciado à sua trama em prol de um documentário sobre borboletas”. É em suma o triunfo de Frison-Roche sobre Balzac e de Norbert Casterets sobre Stendhal. Jean-Jacques Gautier é o paladino dessa forma de crítica.

4) Não se “faz” uma carreira de crítico sem conhecer um dia ou outro Delannoy, Decoin, Cayatte ou Le Chanois, ao passo que Mankiewicz, Hitchcock, Preminger ou Hawks estão a milhares de quilômetros. Resulta daí uma espécie de chauvinismo mais ou menos consciente. André Lang (France-Soir), se não é o maior crítico, é em contrapartida e de longe o mais “patriota”; lendo-o regularmente, percebemos que nada do que é em francês lhe é indiferente.

Eis algumas críticas: Village Magique: “Essa aldeia mágica de renda e de sol perfumada pelo ar marinho…”; Oasis: “O resultado encanta o olho”; Le Port du Désir: “Um filme copioso e dinâmico…”; Les Évadés: “… esse emocionante sucesso justamente homenageado com o Grande Prêmio do Cinema Francês…”; Futures Vedettes: “Um tema de ouro, tratado com espirituosidade”. Pode-se achar que André Lang, que estimula os leitores de France-Soir a irem ver todos esses filmes, só erra por ser excessivamente indulgente; eis por que o que ele escreve sobre A Condessa Descalça, filme americano que intriga bastante aqueles a quem não entusiasma: “O filme é ainda mais estúpido que o título.” Eis um argumento bastante frágil e peremptório. Razzia sur La Chnouf, que ganhou elogios de André Lang, seria um título mais inteligente? E que pensar de uma peça que se intitulasse Frágil?

A política dos autores

5) O crítico é insolente e professoral. Roger Régent, ao sair de Rififi, queria aconselhar Dassin a cortar quinze minutos no hold-up científico. E o que restaria de A Carruagem de Ouro se cada um desses senhores pudesse cortar tal cena que o incomodasse, tal plano que o entediasse? A crítica cinematográfica tem suas convenções: se tal filme estiver assinado Fulano, ninguém o apontará como obra-prima; “o rigor protestante de Jean Delannoy”, “Fernandel, ator trágico”…

A crítica funciona segundo a “lei da alternância”; segundo Giraudoux: “não há obras, há somente autores”; para o crítico de cinema, é tudo ao contrário: não há autores, e filme é como maionese: ou fica bom ou desanda. É aí que intervém a lei da alternância.

A crítica ama um filme de Jean Renoir em cada dois, sistematicamente.

O crítico, que ignora a história do cinema e sua técnica, que não conhece nada sobre a elaboração de um roteiro, só pode julgar pelas aparências, pelos sinais exteriores de ambição. Os críticos julgam os filmes pelas “intenções” de seus autores. Seu desconhecimento da história e da história do cinema, bem como das condições de roteirização dos filmes e de sua execução, faz com que eles (os críticos) sejam incapazes de remontar às intenções, a menos que estejam evidentes, anunciadas no cartaz na entrada do cinema. A incompetência e o preconceito fazem um belo par. Trata-se portanto de julgar, pelas intenções de cada um, filmes cujas próprias intenções não se consegue apontar.

Explosão da crítica

7) O cinema – como, de resto, todas as artes – ficou complicado demais para cérebros que deram o melhor de si mesmos em 1925.

Não surpreenderia que logo viéssemos a assistir à explosão da crítica. Jacques Lemarchand confessou que não entendeu patavina da peça Le Maître et la Servante, André Billy confessou sua perplexidade diante de Les Portes Dauphines, e semana passada M. Emile Henriot (da Academia Francesa) dizia aos leitores do Le Monde que, depois de duas leituras sucessivas do Voyeur, sentia-se incapaz de dizer seu tema. Quando essa franqueza vai chegar aos nossos colegas do cinema?
Será que Lequel admitirá não ter entendido nada de A Condessa Descalça?

No estado atual das coisas, não há mais lugar para deplorar a impotência da crítica cinematográfica em relação à onipotência da crítica dramática.

Na verdade, o crítico cinematográfico, quando sai do cinema, não sabe o que pensar do que acaba de ver. Busca uma opinião junto a seus colegas; o primeiro que falar tem razão, quem encontrar uma bela “fórmula” triunfa.

Com alguma habilidade, um crítico “inteligente” que queira “promover” um filme “difícil” pode conseguir isso escrevendo sua resenha antes de seus colegas. Nas palavras deles, encontrará adaptado, quando não “repensado”, o essencial de sua argumentação. O caso produziu-se recentemente por ocasião de um excelente filme cujo nome não posso dizer.

Curioso exercício, curiosa profissão. Na verdade, recomendo-lhes: “Não dêem tanta importância aos críticos”.

François Truffaut

Um comentário sobre “Truffaut, crítico dos críticos

  1. Não há dúvida que poucos no mundo amaram e se dedicaram ao Cinema com a paixão e completude de François Truffaut (1932-1984). Desde a adolescência frequentava assiduamente cine clubes e a “Cinémathèque Française”, quando estabeleceu forte amizade com André Bazin, o mais reputado crítico do cinema francês e um dos redatores dos “Cahiers du Cinéma” e da revista “Arts”. Ainda em 1947, aos 15 anos, quando conheceu Bazin, Truffaut fundou com seu amigo de infância Robert Lachenay o “Cercle Cinémane” . Em 1950, Truffaut venceu a final do “Concours d’Eloquence” , organizado por Léo Poldes, nos quadros do “Club du Faubourg”. É quando Bazin o convoca para trabalhar ao seu lado na seção cinematográfica de “Travail et Culture”, permitindo-lhe escrever seus primeiros artigos na “La Gazette du cinéma”, dirigida por EricRohmer. Em 1951, Truffaut vai servir o exército e em 1953 entra no “Service cinématographique de l’Agriculture”, quando torna-se crítico de cinema nos “Cahiers”, bem como no hebdomadário “Arts”. É quando escreve seu célebre artigo “Une certaine tendance du cinéma français”, um petardo de efeito mortal avassalador, publicado no no. 31 dos “Cahiers”, de janeiro de 1954, através do qual engaja sua revista e dirige virulento ataque à baixa qualidade da maioria dos filmes franceses, incensados pelos críticos, nominando sem nenhum pudor os destinatários do seu alvo, ao tempo que faz a defesa ostensiva de cineastas franceses importantes, mas desprezados pela crítica, como Jean Renoir, Robert Bresson, Jean Cocteau, Clouzot, Jacques Becker, Marcel Pagnol, Sacha Guitry, Abel Gance, Jacques Tati… A propósito, Truffaut exerceu a crítica, profissionalmente, por apenas cinco anos, de 1953 a 1958, mas nela deixou sua marca pessoal reconhecível, em todos os seus escritos. A partir de 1958, quando criou a a sociedade de produção “Les Films du Carrosse”, da qual participou na produção, nesse mesmo ano, do primeiro longa de Jacques Rivette, “Paris nous appartient”, sua vida toma outro rumo. Passa a dirigir e produzir seus filmes, 22 no total, com desassombrosa independência, o que irá alçá-lo aos patamares mais elevados da cinematografia internacional, inclusive com a conquista do Oscar de 1974 de Melhor Filme Estrangeiro, por “La Nuit Américaine”, embora saído em 1973, como sabemos. Muito belo e oportuno seu comentário sobre os críticos de Cinema, Carlinhos. Abração.
    Abaixo, texto “Une Certaine Tendance du Cinéma Français”. https://genius.com/Francois-truffaut-une-certaine-tendance-du-cinema-francais-annotated

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