Um tesouro perdido – e reencontrado

AMAZONAS, O MAIOR RIO DO MUNDO

O público do Rio de Janeiro vai finalmente conhecer o maior achado arqueológico do cinema brasileiro dos últimos tempos. Amazônia, o Maior Rio do Mundo, do pioneiro  documentarista luso-brasileiro Silvino Santos, vai ser exibido nesta quinta-feira, 7/12, às 18h30, na Cinemateca do MAM. Após a sessão do filme de 66 minutos, teremos um bate-papo com João Moreira Salles, autor do livro Arrabalde – Em Busca da Amazônia, Hernani Heffner, diretor da cinemateca, e Rodrigo Archangelo, pesquisador da Cinemateca Brasileira que trabalhou na identificação do filme. Eu participarei como mediador.

A conturbada história de Amazônia, o Maior Rio do Mundo já tinha sido rapidamente mencionada no belíssimo doc-fic O Cineasta da Selva, de Aurelio Michiles, baseado nas memórias não publicadas de Silvino Santos (1886-1970). Num dado momento, José de Abreu, no papel de Silvino, relata o que aconteceu com seu segundo longa-metragem, rodado entre 1918 e 1920. Menciona “um tal de Propércio Saraiva”, que propôs levar os negativos para a Inglaterra e montá-los em vários idiomas para exibições na Europa. Na verdade, Propércio de Mello Saraiva, noivo da filha de um dos sócios da Amazonia Cine-Film, estava roubando o material e apropriando-se de sua autoria para vendê-lo à distribuidora francesa Gaumont. “O que se sabe hoje é que está na órbita dos planetas”, escreveu Silvino (veja aqui esse trecho do filme de Michiles).

Depois de ser explorado em vários países europeus, segundo apurou o jornal britânico The Guardian, já não havia vestígios do filme nos anos 1930. Entrava para o rol dos perdidos. Não é sequer citado no livro Silvino Santos – O Cineasta do Ciclo da Borracha, do escritor Marcio Souza, publicado pela Funarte em 1999. Outros pesquisadores, porém, davam pela falta desse importante tijolo na construção do cinema amazonense. É o caso de Selda Vale da Costa, autora da primeira tese sobre o cinema de Silvino, e de Cosme Alves Neto, o saudoso Henri Langlois brasileiro, que criou em 1980 o projeto “A volta do filho pródigo” de repatriação de filmes brasileiros. Cosme foi também o articulador da homenagem que fez Silvino ser redescoberto em 1969.

No começo do corrente ano, mais de um século depois da aventura de Silvino, uma cópia do negativo de Amazonas, o Maior Rio do Mundo foi localizada nos arquivos da Cinemateca de Praga, onde hibernava sob o título The Wonders of the Amazon e procedência estadunidense. Entra em cena o crítico Jay Weissberg, diretor do Festival do Filme Silencioso de Pordenone, na Itália. Ele desconfiou dos registros e chamou o pesquisador Savio Stocco, especialista na obra de Silvino Santos. Assim se chegou à identificação do filme, sua restauração, a reconstituição dos intertítulos e a reestreia na Jornada do Cinema Mudo de Pordenone, em outubro último. A primeira exibição no Brasil se deu a 22 de novembro, na Cinemateca Brasileira.

Cineasta do capitalismo amazônico

Silvino Santos chegou de Portugal à Amazônia aos 14 anos, em 1900. Estabeleceu-se como fotógrafo e foi apadrinhado pelo fotógrafo e pintor Leonel Rocha. Em 1914, foi contratado pelo seringalista peruano Julio Cesar Araña, gerente da Peruvian Amazon Company, para fazer um documentário sobre suas terras. A intenção era desmentir as denúncias de que sua empresa tratava indígenas como escravos. Aurelio Michiles também abordou esse assunto, a partir dos diários de Roger Casement, na obra-prima Segredos do Putumayo.

Era o início da carreira de um cineasta a serviço dos magnatas da borracha e do nascente capitalismo amazônico. Nas duas primeiras décadas do século XX, Manaus era o maior centro de produção de riqueza do país. Os coronéis do látex dominavam o poder e exerciam o mecenato em seu próprio benefício. Os negativos do primeiro longa de Silvino, sobre os indígenas da região do Putumayo, perderam-se num naufrágio.

A saga de Amazonas, o Maior Rio do Mundo começou quando empresários da Amazônia fundaram com Silvino a produtora Amazonia Cine-Film, que iria à falência pouco depois da falcatrua de Propércio Saraiva. A partir de então, Silvino tornou-se uma espécie de agregado da família do magnata português Joaquim Gonçalves Araújo, que ostentava o título de comendador e possuía indústrias de vários ramos na Amazônia.

Para J.G. Araújo ele realizaria os seus filmes mais conhecidos. Com o clássico No Paiz das Amazonas, feito sob encomenda para o comendador expor seu império na Feira Internacional de 1922, Silvino tentou recriar o longa roubado. No Rastro do Eldorado documentava uma expedição em busca da nascente do Rio Branco. Terra Encantada é um documentário sobre o Rio de Janeiro. Muito de sua produção foi escoada sob a forma de cinejornais (“Filmogramas”) e inclui também documentários realizados em Portugal, além de inúmeros registros da vida familiar do mecenas J.G. Araújo.

A floresta pela ótica desenvolvimentista

O achado de Praga repõe Amazonas, o Maior Rio do Mundo como o primeiro longa-metragem sobre a Amazônia, quiçá o primeiro registro organizado da vida naquela região. E certamente um dos primeiros documentários de longa-metragem realizados no mundo, bem antes daquele que é considerado o primeiro grande filme dessa modalidade, Nanook, o Esquimó, de 1922. Mas o título com que Propércio o explorou, The Wonders of the Amazon, talvez seja até mais adequado.

O rio Amazonas é apenas um eixo de navegação – ou um pretexto – para Silvino documentar amplamente a flora, a fauna, a pesca e a produção agrícola da Amazônia brasileira e expandindo-se até os indígenas uitotos do Peru. Predomina um olhar estrangeiro, etnográfico sobre as casas flutuantes, inscrições rupestres, captura do peixe-boi, manejo de gado, tratamento da mandioca, etc. A câmera “cataloga” aves, orquídeas, nenúfares e vitórias-régias. Excentricidades como uma tartaruga de duas cabeças e uma onça ocupada em devorar uma ave merecem a atenção curiosa do documentarista.

A floresta é vista como um manancial de riquezas a explorar. Tal é a postura que prevaleceu até pouco tempo e continua a resistir na ideologia do agronegócio. Contra isso João Moreira Salles se insurgiu no seu magistral Arrabalde. O filme mostra o gado já ocupando espaço no que antes era mata. Os indígenas, por sua vez, são tratados como “selvagens”. Eram esses os tempos, não há como culpar o cineasta.

Silvino estava ocupado em transmitir a visão desenvolvimentista dos grandes empresários e comerciantes amazônicos, muito antes que uma consciência ecológica e pluralista florescesse entre nós. Daí a ênfase pormenorizada nos processos de colheita, beneficiamento e embarque de produtos como borracha (o ouro elástico que gerava fortunas na época), castanha, cana-de-açúcar, algodão e madeira. Derrubadas de grandes árvores como o mogno eram cenas épicas, assim como o comércio de peles de animais e a truculência sobre os bichos constituíam rotina para os homens. Estes aparecem quase sempre como mão de obra, mesmo quando posam orgulhosamente com suas caças ou colheitas. São também peças de uma paisagem exótica e exuberante.

Um esteta da etnografia

A cópia resgatada em Praga é certamente incompleta, contendo saltos abruptos e intertítulos aparentemente fora de lugar. As filmagens não têm a fluência e o senso de continuidade demonstrados em filmes posteriores de Silvino. Ainda assim, é flagrante a sua perícia nas angulações expressivas, nas composições caprichadas e na busca de detalhes. Havia ali um esteta, e não apenas um cavador de filmes. A ação é constante dentro do quadro, e o humor se faz presente em intertítulos como “Banhar-se aqui não é recomendável”, que introduz uma cena de jacarés raivosos, ou “Calças estão na moda por aqui”, relacionada a indígenas vestidos até os tornozelos.

Para quem conhece No Paiz das Amazonas, fica claro que este filme de 1922 foi uma recriação ainda mais portentosa de Amazonas, o Maior Rio do Mundo. A comparação entre os dois filmes mostra que o de 1918-1920 não possuía a retórica promocional do posterior, uma vez que não servia diretamente a um patrão específico. A presença de mulheres era mais significativa, a abordagem da indústria madeireira era mais abrangente e havia flashes do beneficiamento do algodão, de canaviais e de uma parada militar, assuntos que não constavam do filme de 1922. Por outro lado, algumas tomadas aparecem nos dois filmes, como o seringueiro deixando sua casa pela manhã rumo ao trabalho e um grande grupo de indígenas filmado do alto enquanto se deslocava por uma estrada.

A cópia preparada pela Cinemateca Brasileira, correalizadora das sessões que têm sido feitas fora de São Paulo, foi agraciada com uma trilha musical composta especialmente para a ocasião por Luís Henrique Xavier, flautista e professor de composição, teoria e análise do departamento de música da Unicamp. Depois de assistir à sessão em São Paulo, Aurelio Michiles desdobrou-se em elogios ao trabalho do músico.

 

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