Cegueira parcial do espectador

ANATOMIA DE UMA QUEDA   

O vencedor da Palma de Ouro de Cannes, dos Globos de Ouro de filme estrangeiro e roteiro, e indicado a cinco Oscars é basicamente um filme de tribunal. Uma escritora é acusada de ter matado o marido no seu chalé dos Alpes franceses. O filho adolescente, de visão comprometida após um acidente, é quem estava mais próximo do acontecido e sofre um dilema moral ao ser arrolado como testemunha. O advogado de defesa é apaixonado pela ré, e o de acusação é uma fera de ironia ao lidar com a presunção de culpa da acusada.

Anatomia de uma Queda poderia ser, no fundo, um filme comum sobre uma morte envolvida em dúvidas, suposições e argumentações um tanto vagas. Mas em algumas coisas o longa de Justine Triet (A Batalha de Solférino, Na Cama com Victoria) se destaca nesse gênero. A começar pela forma como o roteiro de Justine e seu marido Arthur Harari descasca as várias camadas dessa “cebola” dramática, sem nunca fornecer elementos sólidos para uma tomada de posição do espectador.

Há um histórico de desavenças na relação do casal, que envolve culpa, ciúme, queixas de parte a parte, gravações comprometedoras, uma tentativa de suicídio e até uma disputa literária. A escritora Sandra Voyter (Sandra Hüller, em interpretação magistral) vê sua vida íntima e seus livros de autoficção serem esmiuçados nas audiências, enquanto o menino se fecha em copas, aturdido pela incerteza quanto a tudo o que ouve e deduz.

A cegueira parcial do garoto pode ser uma metáfora para o espectador, que a tudo assiste como através de um véu turvo. Somos arrastados pela contenda no tribunal em torno de indícios e supostas provas, entre as quais o depoimento de um especialista em respingos de sangue. O tema jurídico-policial se entrelaça com a descrição de um inferno conjugal.

Justine Triet se confirma como uma diretora extremamente hábil no manuseio das curvas emocionais que afetam os três personagens centrais: Sandra, o menino e o advogado. A mise-en-scène milimétrica é de tal eficiência que nos magnetiza da primeira à última cena, 152 minutos depois. Um belo exemplo de escrita e realização cinematográfica.

>> Anatomia de uma Queda está nos cinemas.

4 comentários sobre “Cegueira parcial do espectador

  1. Bela dica! Acabei de assistir e saí alimentada do cinema. Cada departamento super bem delineado, todo mundo fazendo o mesmo filme, com diz Lumet, um primor de maravilha. Um respeito às pausas, sem nunca fazer barriga. Trouxe todos eles para casa comigo. Menos o promotor, talvez. Este espera na porta. Belíssimo trabalho. Agora quero ver os 2 outro filmes dela mencionados por você.

  2. eu tomei uma decisão a favor da inocência dela no ato. E o q me tocou profundamente para tal foi a posição do guri – o q importa é saber: por quê? POr que para o pai a vida não valia a pena ? Assim me posicionei.

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