Duas visões de “Dias Perfeitos”

DIAS PERFEITOS por Carlos Alberto Mattos e Sérgio Moriconi

Mais um dia, Tóquio

por Carlos Alberto Mattos 

Em sua terceira incursão pelo Japão (depois de Tokyo-Ga e Notas sobre Roupas e Cidades), Wim Wenders optou por uma gritante despretensão. Dias Perfeitos (Perfect Days) limita-se a seguir a rotina de um homem que, afastado de sua família rica, vive modestamente fazendo faxina em banheiros públicos de Tóquio. Não são banheiros quaisquer, mas frutos do recente projeto de design The Tokyo Toilet, levado a cabo no bairro de Shibuya, com 17 exemplares de toaletes-butique. Um convite ao cineasta para conhecer o projeto resultaria na ideia desse filme.

Todo dia o Sr. Hirayama faz tudo sempre igual: acorda com o ruído da varredora de rua, escova os dentes, apara o bigode e a barba, veste seu macacão de trabalho, recolhe moedas, compra uma lata de café na máquina, pega seu carro e se dirige a Shibuya através de uma Tóquio cheia de viadutos e sem qualquer atrativo. Depois de limpar minuciosamente os banheiros, vai tomar banho em outro lavatório público e eventualmente passa numa livraria, numa lavanderia e numa loja de revelação de fotografias.

Ele não sabe o que é Spotify. Ouve música pop em fitas cassete e faz fotos analógicas de árvores como hobby favorito. Se pronuncia dez frases em todo o filme, contei a mais.

Até perto do final, quase nada sabemos do Sr. Hirayama. Vemos o que ele vê: um morador de rua dançando butô, uma moça enigmática no parque, um menino perdido da mãe, uma dona de bar que gosta de cantar, um ajudante que não consegue conquistar a namorada. Visões impressionistas de um homem solitário e aparentemente de bem com a vida. Zero expectativa, zero conflito. Wenders parece perseguir um certo estado de alma, uma bem-aventurança que eventualmente vai mostrar suas fissuras na forma de lágrimas.

Dias Perfeitos tem na repetição o seu dispositivo. Entre um dia e outro, o Sr. Hirayama sonha com imagens fugidias, retiradas de instalações de Donata Wenders, esposa do diretor. Um papel rabiscado com o “jogo da velha”, a visita de uma sobrinha e o encontro com um homem amargurado são as principais conexões do protagonista com o resto do mundo.

Houve quem enxergasse profundidade nesse estudo de personagem que, a mim, pareceu vago e excessivamente discreto. Wim Wenders troca qualquer esteticismo por uma narrativa banal e uma câmera na mão que enquadra obsessivamente a torre Sky Tree, a mais alta do mundo. Este é um filme propositadamente menor, um capricho prosaico do diretor, que prosaicamente se deixa filmar num canto do quadro na sequência da loja de cassetes usados. Que esteja concorrendo ao Oscar de filme internacional é prova de que os padrões de gosto atuais não mais distinguem entre o trivial e o excepcional.

Carlos Alberto Mattos

Confira minhas resenhas dos outros indicados ao Oscar de filme internacional:
A Sala dos Professores
A Sociedade da Neve
Eu, Capitão
Zona de Interesse


Além das nuvens

por Sérgio Moriconi

Singelo e belo talvez seja uma dupla adjetivação simples e óbvia demais para definir o último filme de Wim Wenders. Mas Dias Perfeitos é isso mesmo: singelo e belo, muito embora por trás da trivialidade do enredo se esconda algo transcendente e profundo, como, entre outras, as imagens em preto e branco do sol que se insinua por trás da folhagem das árvores. A princípio enigmáticas, quase esotéricas, elas são alegóricas e dizem respeito à essência mesma do que Wenders quis dizer ou quer dizer com o seu filme. Essas imagens/seqüências recorrentes se repetem ao longo de toda a narrativa. A gente pode falar sobre elas mais adiante. O importante agora é lembrar que Dias Perfeitos foi indicado pelo Japão para representar o país no Oscar de 2024, foi um dos filmes mais aplaudidos quando exibido na última edição do Festival de Cannes, onde seu protagonista, Kôji Yakusho, ganhou o prêmio de melhor ator. Justíssimo, para dizer o mínimo. Quando apresentado nos festivais, alguns críticos lastimaram o ritmo lento, segundo eles, “inadequado para todos os públicos”.

Dias Perfeitos se move como as nuvens no céu. Lentas, efêmeras, fugidias, passageiras. “As coisas não deviam mudar”, diz Hirayama (Yakusho) num determinado momento. Ele é um passadista. Ouve música em fitas cassetes, faz fotos com máquinas analógicas, frequenta sebos de livros, de discos de vinil e de cassetes, além de bares e restaurantes triviais. O filme tem como uma clara referência A Rotina Tem Seu Encanto, uma das obras-primas de Yasujiro Ozu, verdadeiro poema sobre a conformidade e transcendência da resignação e do banal. Em Dias Perfeitos, ao contrário, há um desassossego, ausente em Ozu, e que só vai se manifestar depois da segunda metade da narrativa. É quando começamos a conhecer melhor a personagem de Hirayama, o minucioso e solitário funcionário de limpeza de Tóquio. Hirayama ganha a vida higienizando os belos – inclusive do ponto de vista arquitetônico – banheiros públicos da capital do país.

Hirayama não fala, ou quase não fala até mesmo com seu companheiro de trabalho. Numa das vezes, se comunica com um sujeito ausente através de um “jogo-da-velha”. O indivíduo deixava cabalisticamente a sua jogada, rabiscada num papelzinho metido numa fresta de um dos aparelhos sanitários. Hirayama acha o papel e dá sequência ao jogo, no que é acompanhado pelo seu “competidor”.  Afinal, quem é Hirayama? Nós o vemos em seu espaçoso e espartano apartamento, despido de móveis, com uma prateleira ao longo de uma das paredes do cômodo principal, repleta de cassetes, livros e o que parece ser fitas de VHS ou DVDs. Wenders segue acompanhando o cotidiano de Hirayama no trabalho e fora dele de diferentes ângulos e maneiras. Seu meticuloso ritual de asseio, aparo do bigode e o cuidado com seus pequenos vasos de plantas. Hirayama se levanta pela manhã bem cedo antes do sol nascer. Do lado de fora da casa, invariavelmente observa o céu, dirige-se à máquina de bebidas onde retira um copo de café gelado. Dentro de sua pequena van utilitária, introduz uma de suas fitas cassetes no aparelho do veículo e parte para a sua ação cotidiana.

As músicas que ouve, todas de repertório anglo-saxão (com exceção de uma única japonesa), são para Hirayama uma forma de escape. Um destaque, obviamente, é Perfect Day, de Lou Reed, uma natural inspiração não só para o título do filme, como também, através dos seus versos, comenta a placidez da primeira metade do filme, quando a vida do protagonista segue modesta e calma. Outras como The House of The Rising Sun – um motivo folclórico de Nova Orleans gravada por Woody Guthrie, Joan Baez, Bob Dylan, The Animals, entre tantos outros – e Sunday Afternoon, dos Kinks, já exprimem o desassossego experimentado na última parte do longa-metragem.

Wenders é um amante do pop/rock. O rock, e a cultura norte-americana de um modo geral, são (ou pelo menos foram) para Wenders também um escape. Ambos se contrapunham à desoladora paisagem do pós-guerra na Alemanha de sua juventude. A perda de referências urbanas está expressa em Asas do Desejo na cena em que um senhor caminha sobre as ruínas de Potsdamer Platz, em Berlim, aponta para os lados, nomeando os famosos cafés, restaurantes, linhas de bondes que já não existem mais. Enfatiza a agitação da grande metrópole antes da Segunda Grande Guerra. A perda de referências está também expressa na cena em que Hirayama pergunta a um passante se não era ali, onde vemos um terreno limpo, que existia um determinado prédio agora demolido. “As coisas não deviam mudar”, lembram-se?

O efêmero na vida, o mal-estar existencial, está presente e representado no nomadismo das personagens de Alice nas Cidades e Paris-Texas, por exemplo. O escape – ou a fuga dos valores socialmente constituídos – no primeiro dos filmes citados é o transitório das estações de trem. No segundo, é a alegoria do deserto, este não-lugar onde não se cria raízes nem identidades – com a exceção dos beduínos e tuaregues, sem qualquer intenção aqui de fazer graça ou ironia. Qual seria então o escape de Hirayama, além das músicas de suas fitas cassetes? Hirayana tem o hábito de tirar fotos analógicas em preto-e branco das árvores da pequena praça onde descansa todos os dias no horário de almoço. As fotos são sempre de baixo para cima, em contra-plongé, capturando os raios de sol por entre as folhagens. No Japão existe uma expressão, Komorebi, muito utilizada na poesia, que significa o exato momento em que um feixe de luz se descortina diante de nossos olhos, quando os raios de sol atravessam uma folhagem, por exemplo. É nesse momento que os indivíduos são transportados para uma viagem interior, num movimento de descoberta e entendimento do seu próprio ser.

Hirayama seleciona as fotos que lhe parecem melhores e as guarda cuidadosamente em caixas que deposita no armário. As fotos que vemos no filme, ao que parece, foram feitas pela mulher de Wenders, a artista visual Donata Wenders. Ela é a responsável pelos fragmentos dos filmes experimentais que vemos nos sonhos de Hirayama. As imagens emulam o impressionismo onírico/psicanalítico da artista norte-americana Maya Deren. Elas são em preto e branco, como se subvertessem a lógica da caverna de Platão. Hirayama prefere a representação do insondável, do gasoso. Rejeita a conformidade e o compromisso, manifesto no repentino aparecimento de sua irmã e de sua sobrinha. Ela, a sobrinha, intui o mesmo tipo de não comprometimento, por isso sua afeição por Hirayama. A jovem quer fugir dos valores sociais supostamente atribuídos a ela. A irmã, a sobrinha e a dona do restaurante por quem Hirayama tem afeição iluminam o conflito até então oculto do filme. A fuga das identidades como atavismos ou atributos pré-determinados é um tema recorrente em Wenders, temática herdada de Antonioni, um de seus pais espirituais. Lembramos de Profissão: Repórter. A fuga de Hirayama, ao contrário daquela do personagem de Jack Nicholson, se dá no mesmo lugar, no mesmíssimo lugar, no seu micro mundo, uma fuga fruto do choque entre a permanência e a impermanência das coisas.

*O título deste texto é uma referência ao último longa-metragem de Michelangelo Antonioni, cuja direção é dividida com Wim Wenders.

Sérgio Moriconi

>> Dias Perfeitos está nos cinemas.

8 comentários sobre “Duas visões de “Dias Perfeitos”

  1. Duas visões digladiantes do mesmo filme. Prefiro a otimista.

    Vejo o filme com poesia. A beleza da simplicidade da vida numa das cidades mais agitadas do mundo. O conformismo com a felicidade das pequenas coisas. As fotos das árvores, explicadas no final dos créditos, representam a memória de um momento único, que não se repete e que somente ele pôde apreciar.

    A “exibição obsessiva” da torre nos mostra, por vários ângulos, o que ele vê quando sai de casa e sorri. O céu, as nuvens e um monumento que é um dos símbolos da capital.

    Vendo o filme, lembrei de uma propaganda antiga que tinha o mote: “O dinheiro não traz felicidade, manda buscar”. Este filme nos mostra como se pode ser feliz com pouco.

    Ele é feliz. Eu vi duas vezes, em ambas saí do cinema mais leve.

    Essa é a função do bom filme.

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  6. Amei, curti um filme que não causa nenhum stress, nenhuma ansiedade. Bem zen, nada monótono. E a resenha do Moriconi que narra bastidores e compara com Asas do Desejo. Sugiro ao Carmattos assistir de novo.

  7. Ainda não assisti, mas acho que vou concordar com você. Atualmente busca-se significados e valores onde nem sempre tem. Discursos feministas onde não se pretendia explorar, maestrias na banalidade, beleza no horror. Resta-nos exercitarmos o nosso próprio senso crítico. Abraços

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