Nosso sonho de emigrantes

EU, CAPITÃO

Enquanto os primos Seydou e Moussa aspiravam a sair do Senegal e fazer sucesso com suas músicas na Europa (“os brancos vão nos pedir autógrafos”), eu não pude deixar de pensar em Claudinho e Buchecha em Nosso Sonho. Mas a saga de Eu, Capitão (Io Capitano), concorrente ao Oscar de filme internacional, não demora a tomar rumo muito diferente. Contrariando os conselhos dos mais velhos e confiando na palavra de um mandingueiro fajuta, os meninos se arriscam na clássica aventura da emigração ilegal.

O diretor Matteo Garrone (Gomorra, Reality, O Conto dos Contos, Pinóquio, Dogman) e seu time de dez corroteiristas – incluindo imigrantes que compartiram suas experiências – compuseram uma odisseia extremamente dramática através do Níger, do deserto do Saara, da Líbia e do Mediterrâneo. Seydou, 16 anos, cumpre uma jornada de herói pontuada por detenções, separação, extorsões violentas, tortura e trabalhos forçados. A impossibilidade de evitar a morte de uma mulher na extenuante travessia do deserto o faz assumir perante si mesmo o compromisso de salvar não só a si próprio, mas ao primo ferido e a todos os que estiverem a seu alcance.

Assim o garoto frágil e dependente de antes se torna uma figura quase maior que a vida. A saga de Seydou (Seydou Sarr, excelente) assume um caráter de fábula, apesar de todo o realismo brutal com que a viagem é encenada. Nos momentos mais difíceis, seus sonhos e devaneios tomam a forma de vinhetas mágicas. Ou, na realidade, aos vilões do tráfico de imigrantes se contrapõem anjos da guarda que lhe permitem seguir adiante.

O acúmulo de situações extremamente dramáticas aproxima o filme, perigosamente, de uma exploração da desgraça dos emigrantes africanos. Ou de uma ficção acautelatória: não venham porque podem morrer no caminho. O trajeto se conclui não com um ponto final, mas com um ponto de interrogação às margens da terra firme. Como será, afinal, o despertar desse pesadelo?

>> Eu, Capitão está nos cinemas.

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A Sala dos Professores
A Sociedade da Neve
Dias Perfeitos
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5 comentários sobre “Nosso sonho de emigrantes

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