Sobreviventes, Deus, cães e um intruso na elite

Notas sobre A SOCIEDADE DA NEVE, O NOVÍSSIMO TESTAMENTO, DOGMAN e SALTBURN

Nos Andes, mais uma vez, com louvor

Eu não estava apostando muito em A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve). Depois de quatro filmes sobre os sobreviventes do desastre aéreo nos Andes – sendo três ficções e o magnífico documentário “Stranded” –, eu duvidava que aquela história ainda pudesse me emocionar. Pois deu-se o contrário. O filme de J. A. Bayona me angustiou, mais uma vez me fez pensar na fragilidade da vida, quase me levou às lágrimas e me arrebatou com um verdadeiro prodígio de reconstituição dramática.

O que o documentário de Gonzalo Arijón tem de recuperação da memória dos sobreviventes reais, A Sociedade da Neve tem de sugestão artística de algumas das situações-limite mais extremas já experimentadas por seres humanos. Não é um filme fácil de assistir, tal é a sucessão de detalhes trágicos e tal é o realismo com que tudo é encenado. Nos 72 dias de inferno na neve, os rapazes do time de rugby uruguaio e demais passageiros do Fairchild enfrentaram não somente a queda do avião, mas também o frio intenso, avalanches, desesperança e a fome que os levou à decisão crítica de se alimentar da carne dos amigos mortos.

Obviamente, a essa altura não há mais novidades a acrescentar ao relato do episódio. O que faz esse filme ser excepcional é a capacidade sempre renovada do cinema no sentido de nos transportar para onde nunca poderíamos – nem gostaríamos de – ter estado. Bayona, sua megaprodução e seu excelente elenco vão ao cerne de cada pormenor do drama sem jamais soarem apelativos ou melodramáticos. A forma parcimoniosa como a antropofagia é visualizada prova essa habilidade no mostrar sem explorar.

Alguns sobreviventes participam em pontas, sobretudo em cenas do aeroporto. Um deles, Eduardo Strach, ainda hoje acompanha turistas ao local da queda na expedição Andes Survivors. Por 4.300 dólares, passagens áereas não inclusas, a agência leva você até lá e Eduardo explica tudo o que se passou ali. Experiência de montanhismo não é requisito necessário.

>> A Sociedade da Neve está na Netflix.

Confira minhas resenhas dos outros indicados ao Oscar de filme internacional:
A Sala dos Professores
Dias Perfeitos
Eu, Capitão
Zona de Interesse



Desgraças de um Deus belga

Considero o belga Jaco van Dormael um dos fabulistas mais simpáticos do cinema europeu. Nos anos 1990, ele me encantou com “Um Homem com Duas Vidas” (Toto le Héros) e “O Oitavo Dia”. Mais recentemente, com “Sr. Ninguém”. Suas histórias lidam com improbabilidades da vida de uma maneira cáustica e ao mesmo tempo terna e suave. Assim é também O Novíssimo Testamento (Le Tout Nouveau Testament), filme de 2015 que acaba de entrar na plataforma Mubi.

Deus (Benoît Poelvoorde) não está morto. Vive num apartamento mal ajambrado de Bruxelas. Sádico, do seu computador programa todas as desgraças da raça humana. Mora com a mulher submissa, a deusa, e a filha Ea (Pili Groyne). O filho JC gostava tanto de improvisar à revelia do pai que acabou morrendo numa cruz. A menina, cansada dos maus tratos e grosserias de Deus, hackeia o computador paterno e desce para a realidade, não sem antes detonar um morteleak, ou seja divulgar as datas de morte de cada pessoa na Terra.

Ela vai convocar seis novos apóstolos para escrever o seu próprio evangelho. Cada um faz um tipo de pessoa infeliz, incluindo um assassino compulsivo, um obcecado sexual e Catherine Deneuve no papel de uma perua consumista que inicia um romance só previsto por Nagisa Oshima em “Max Mon Amour”.

Com esses ingredientes, van Dormael cutuca o mito do destino e os tabus do catolicismo. Os carolas não vão gostar de ver aquela caracterização degradante do Pai Eterno. O humor às vezes mórbido e sacrílego se conjuga com uma certa tristeza e com os voos da fantasia mais doce. Uma mistura que o cineasta sempre soube dominar. As pequenas boas ideias se acumulam, outras nem tanto, mas tudo flui prazerosamente. Muitos efeitos especiais ajudam a construir uma atmosfera mágica e ingênua no melhor sentido. Tudo para mostrar que os erros da Criação talvez venham do fato de, ao que consta nos catecismos, Deus não ser mulher.

>> O Novíssimo Testamento está na plataforma Mubi.  



Infeliz pra cachorro

Não confundam esse filme com o homônimo de Matteo Garrone, lançado aqui em 2019. O Dogman de Luc Besson trata também do amor entre homem e cães numa chave de thriller gótico. Depois de ser detido por estar dirigindo, todo ferido, uma caminhonete cheia de cachorros, Douglas (Caleb Landry Jones) conta sua história em flashbacks à psiquiatra da polícia.

Vamos então acompanhar seus infortúnios desde a infância, quando o pai o encerrou numa jaula com os cães que treinava para rinhas. É a história de um cara solitário, infeliz e fatalista, que encontrou razão de viver a partir de um canil. E não é pouco o que lhe sucede: paraplégico, tolamente apaixonado por uma atriz, engajado em shows de drags, chefe de uma gangue de cães com pretextos de Robin Hood…

Tudo o que queremos é ser amados e protegidos, acredita Douglas. Os cães são experts nisso, principalmente quando se tem um mafioso no seu encalço. Nada, porém, nos protege contra a visão de uma Marisa Berenson (lembram-se dela?) emparedada sob quilos de botox. Para nossa sorte, é só uma pequena ponta.

Por mais absurdo que tudo possa parecer, essa nova produção de Besson falada em inglês (e passada em Nova Jersey) tem virtudes de entretenimento até a sua terça parte. O ator tem carisma, a cachorrada é bem dirigida e o drama de Douglas não deixa de ter certo apelo. No entanto, o coquetel de disparates começa a fazer água bem antes do final, a partir da entrada em cena de um investigador de seguros. É como uma senha para todos os defeitos do filme virem à tona numa enxurrada de clichês e cenas constrangedoras. Douglas podia ser um personagem de Fassbinder, desde que tansplantado para um cabaré de quinta.

>> Dogman está nos cinemas.



Um intruso na elite britânica

SALTBURN é mais um desses “fenômenos” cinematográficos que eu custo a entender. O filme anterior da atriz e agora diretora Emerald Fennell, “Bela Vingança”, já tinha me soado como um pastiche sensacionalista sob medida para a era do MeToo. Saltburn, a meu ver, consegue ser ainda pior.

O filme aciona o velho mote do jovem humilde que aspira a uma classe mais alta. Oliver (Barry Keoghan) é bolsista em Oxford e não consegue se enturmar em meio a tanto esnobismo. Vidrado no colega Félix (Jacob Elordi, o Elvis de “Priscilla”), por quem todos se apaixonam, ele consegue se aproximar e ser protegido. Acaba convidado para passar as férias na mansão aristocrática da excêntrica família de Félix, onde aparentemente tudo pode acontecer.

E o que acontece? É claro que não vou contar, mas só adianto que envolve ciúmes, anorexia, escatologia sexual, necrofilia e diálogos “incorretos” de uma elite permissiva e meio louquinha. Para os britânicos pode haver ressonâncias históricas e de classe que justifquem terem achado o filme muito provocativo. Mas para quem não compartilha tais conotações, é mais provável que tudo aquilo pareça somente banal e gratuito.

As relações de dominação, de parte a parte, pretendem dar mais complexidade a um argumento que não se sustenta bem em pé. Aliás, nem deitado. E a cereja do bolo vem no final explicativo, quando nos enfiam pela goela uma trama rocambolesca que só merece uma boa risada. De irritação, por supuesto.

>> Saltburn está na plataforma Amazon Prime.   

 

4 comentários sobre “Sobreviventes, Deus, cães e um intruso na elite

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