Comédia absurda sobre a opressão

CRÔNICAS DO IRà e uma nota curta sobre JARDIM DOS DESEJOS                      

O recente Festival de Cannes consagrou Mohammed Rasoulof por seu novo filme, The Seed of the Sacred Fig, após sua fuga de uma condenação no Irã. Risco semelhante corre Ali Asgari, diretor de Crônicas do Irã (cujo título original, Ayeh Haye Zamini, é traduzído por “Versos Terrestres”, ao que parece uma referência ao amaldiçoado Versos Satânicos, de Salman Rushdie). Depois de fazer essa sátira mordaz às instituições iranianas, Asgari foi proibido de viajar para fora do país e de fazer filmes até segunda ordem.

Um dos personagens de Crônicas do Irã é justamente um cineasta no momento de apresentar seu roteiro autobiográfico a um censor, que lhe recomenda cortar tudo o que considerava “anormal” para que pudesse filmar. Assim como esse, outros oito personagens protagonizam diálogos absurdos com representantes do estado e de empresas.

O filme, dirigido por Asgari e pelo iraniano-estadunidense Alireza Khatami, é composto de nove planos-sequência com câmera fixa, em que alguém se defronta a um servidor público ou um empresário postado fora do quadro, e de quem apenas ouvimos a voz. O dispositivo despersonaliza o oponente e caracteriza um aparato de controle estrutural, difundido em vários setores da sociedade.

Um homem tem recusado o nome escolhido para o seu filho no registro civil. Uma menina é obrigada a provar véus horrorosos para uma cerimônia na escola. Uma adolescente é pressionada a confessar que chegou à escola na motocicleta de um homem. Uma moça é acusada de dirigir sem o hijab (o véu de cabeça). Outra jovem é assediada pelo homem que poderá contratá-la para um emprego. Um homem tem dificuldades em tirar carteira de motorista porque tem tatuagens no corpo. Outro é submetido a uma sabatina religiosa enquanto é entrevistado para um trabalho. Uma senhora procura o seu cachorro recolhido pela polícia (os cães são considerados animais impuros no Irã).

Cada uma dessas entrevistas equivale a um julgamento pessoal, em que são contestados o livre arbítrio sobre seus corpos e sua vida privada. É nesse nível pessoal que se exerce a opressão do estado teocrático. No varejo. A dialogação incessante e circular é típica do modo de ser iraniano, como já vimos em tantos filmes daquele país. Mas aqui o confronto dos cidadãos comuns com as figuras de autoridade ganha tonalidades kafkianas, quase surrealistas, tal é a interferência das normas sociais sobre a liberdade das pessoas. Com frequência, as interações se tornam cômicas de tão despropositadas.

Ali Asgari já era conhecido no Brasil por mais um libelo contra o ultraconservadorismo islâmico. Até Amanhã, disponível na plataforma Filmicca, traz a atriz Sadaf Asgari (sobrinha do diretor, que interpreta a moça do hijab em Crônicas do Irã) no papel de uma jovem mãe que precisa esconder dos seus pais o bebê que teve sem se casar.

>> Crônicas do Irã está nos cinemas.



Uma nota sobre JARDIM DOS DESEJOS

Contém spoilers!

Já conhecemos Paul Schrader e seus personagens obscuros, que flertam com o fascismo e depois vão em busca de alguma redenção. Eles são taciturnos, lobos solitários que travam monólogos interiores, geralmente em torno de um assunto obsedante. Assim são os protagonistas de Taxi Driver (do qual Schrader foi roteirista), O Jogador de Cartas e desse Jardim dos Desejos (Master Gardener), que entra agora em cartaz.

O horticultor vivido por Joel Edgerton carrega no tronco (no seu, não de alguma árvore) os sinais de um passado horroroso. Mas isso não o impede de ir para a cama com a indevassável patroa (Sigourney Weaver), nem de procurar romance com uma jovem aprendiz que podia ser sua filha se não fosse negra. Nem o impede de bancar o justiceiro e ganhar um final feliz.

O filme é tedioso, inverossímil, desagradavelmente lacunar e, mais que tudo, ofensivo em sua passada de pano num supremacista branco que sequer demonstra algum arrependimento pelos assassinatos que cometeu. Ok, Schrader arrisca-se em tratar de gente abominável e às vezes dar certo. Mas nesse jardim nefasto as flores cheiram muito mal.

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