Minha dificuldade de chegar até “Moscou”

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A semana cinematográfica foi agitada por um artigo de Eduardo Escorel na revista piauí, onde ele fez sérias restrições a Moscou, dirigido pelo amigo Eduardo Coutinho e produzido pelo editor da revista, João Moreira Salles. O blog da Folha Ilustrada repercutiu e colheu respostas de Coutinho. Eu pensei em publicar imediatamente este artigo que já havia escrito e guardava muitas semelhanças com o de Escorel. Mas resolvi esperar até o dia da estreia, como planejava.      

O fato é que, pela primeira vez em muitos anos, não saí feliz de um filme de Coutinho. Vi e revi Moscou na esperança de ter alguma iluminação. Li textos de colegas que respeito, alguns bastante contorcionistas no esforço por compreender o filme, mas nada me tirou a sensação de incompletude, uma relativa frustração. Tento esmiuçar as razões, seguindo um caminho de análise.  

Desde Santa Marta: Duas Semanas no Morro, os filmes de Coutinho se fundam no tripé risco-encontros-composição.

No princípio é sempre o risco de escolher um assunto, um grupo social restrito, e saltar no vazio sem nenhuma garantia de que aquilo vai dar filme. Em O Fim e o Princípio, esse fator foi radicalizado: ir para o interior da Paraíba sem pesquisa, sem tema nem pré-produção.

Depois vêm os encontros. Cada personagem é um pequeno ato do futuro filme, sozinho diante da câmera. O instante é o que interessa, não a vida real, nem o contexto. É a conversa como evento cênico, antes mesmo de ser evento cinematográfico.

Por fim, a composição de trechos áureos desses pequenos atos segundo uma forma e um ritmo que produzem uma impressão de inteireza, uma verdade de cinema. Os pedaços de conversas viram uma conversa maior, coral, de alguma maneira harmoniosa.  

Desses três elementos fundamentais, reconheço apenas um em Moscou: o risco. A par de sua trajetória de avanços quase contínuos, Coutinho decidiu ir além dos espelhamentos de Jogo de Cena e abrir mão de personagens reais. Aqui, só temos atores, e a verdade em questão é tão-somente uma verdade do teatro. Não há mais o atrito da “vida real”. O campo de deslizamento é mínimo. O risco é enorme, mas desta vez, a meu ver, o realizador não passou incólume.

O tema da memória, obsessivo entre documentaristas, é trabalhado no diálogo da peça de Tchekhov com lembranças pessoais dos atores. Seria extraordinário se o caráter francamente “teatral” de todo o processo não impedisse a criação de uma energia autêntica, nascida da própria vida.     

Pergunto-me se faltam os encontros. Em Moscou, Coutinho não é mais uma presença implícita ou explícita ao lado da câmera. A interação foi substituída, quase sempre, pela observação. Uma observação participante, digamos, mas ainda assim uma observação de eventos cênicos. O cineasta não se afirma nesse idioma, que visivelmente não é o seu. Há um vazio do lado de cá, às vezes preenchido por  personagens no extra-quadro. Quando não é isso, há somente a quarta parede, ocupada pelo aparato cinematográfico. Nisso Coutinho se distancia radicalmente do que tem feito nos últimos 20 anos.

Mas a relativa ausência desse lugar do entrevistador não basta para explicar o impasse de Moscou. O mais problemático é a deficiência do terceiro fator, a composição. Não creio que seja um problema específico de montagem, mas de trânsito entre fatos de teatro e fatos de cinema. As cenas filmadas com o Grupo Galpão não formam uma entidade fílmica reconhecível. Os exercícios se sucedem, alguns mais bonitos, outros mais consistentes, mas sem atingirem a unidade e a capacidade de afirmação que encontramos nos outros filmes do autor.

Enrique Diaz e Coutinho

Enrique Diaz e Coutinho

Na peça de Tchekhov, as três irmãs aspiram por voltar a Moscou. A ficção talvez seja a Moscou de Coutinho, que dela se afastou há 38 anos. Aos poucos, ele volta a se avizinhar desse reino, embora mudado como qualquer um que regressa a uma cidade depois de tanto tempo. Chego a intuir o que faz Enrique Diaz, cicerone dessa etapa da volta, mas tenho dificuldade para entender onde Coutinho quis chegar. Coloco assim, em primeira pessoa, porque talvez seja problema meu, mais que do filme.

2 comentários sobre “Minha dificuldade de chegar até “Moscou”

  1. Bia Lessa encenou a peça no Rio, se não me engano em 2005, com Renata Sorrah, Ana Beatriz Nogueira, Betty Gofman.

  2. A única coisa boa de ver “Moscou” foi que deu vontade de reler o texto de “As Três Irmãs”. Melhor ainda seria ver o texto encenado (comme il faut, de preferência). Infelizmente as irmãs só estiveram no palco aqui no Rio, que eu saiba, em torno de 1973, com direção do Zé Celso, uma encenação “desesperada” de acordo com os tempos sombrios da época.
    “Moscou” foi um projeto até mesmo ousado, mas o que bate na tela é uma frustração só. O jogo entre o documental e a ficção talvez tenha ido longe demais na proposta de ensaios para uma montagem que jamais chegaria aos palcos; e o filme é que não chega a lugar nenhum. Talvez tenha sido uma proposta fake demais para dar certo?

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