A arte e os descaminhos da psique

Notas sobre MEU AMIGO LORENZO e AS LINHAS DA MINHA MÃO

A sala de música

André Luiz Oliveira é um artista multitalentoso. Além de cineasta dos melhores do país, é músico de muitos instrumentos e grande cultor de música indiana. Eu só não sabia ainda da sua vocação para o que o vemos fazer em Meu Amigo Lorenzo. Durante 15 anos, entre 2007 e 2022, ele cultivou uma relação de afeto e cura através da música com o menino Lorenzo Barreto, diagnosticado no chamado “espectro do autismo”. E documentou amorosamente esse processo.

Tudo começou, na verdade, com o desafio assumido pela musicoterapeuta Clarisse Prestes de lidar pela primeira vez com uma criança autista. Ela convidou seu companheiro André Luiz para registrar algumas sessões, e a primeira parte do filme mostra as interações entre ela e Lorenzo, assim como as explanações de Clarisse sobre o tratamento. Logo, porém, todos notaram que havia uma ligação espontânea e entusiasmada do menino com André, baseada num senso musical muito precoce já percebido pelos pais. “Vamos para a sala de música”, convoca Lorenzo muitas vezes, fazendo-me lembrar do sublime filme A Sala de Música, de Satyajit Ray.

Aos poucos, o vínculo entre Lorenzo e André passa a ser dominante. O que antes eram simples reações de Lorenzo à música foi evoluindo para a construção de uma verdadeira parceria. A laboriosa montagem, assinada pelo próprio diretor, pontua os diversos tempos ao longo de 15 anos sem linearidade, mas buscando iluminar as conquistas do hoje rapaz. Basta ver como algumas músicas ecoam ao longo do tempo, revelando os progressos de Lorenzo na atenção, compreensão e por fim domínio absoluto da performance.

Lorenzo tem voz afinada, toca piano popular e clássico, assim conquistando um desempenho de comunicação que parecia impossível no início. É emocionante assistir ao convívio entre os três personagens, calcado no acolhimento, no estímulo e no afeto. Minha única restrição diz respeito às acelerações de imagem e som usadas para condensar alguns momentos de vacilação de Lorenzo. Isso destoa do tratamento em geral suave e natural das cenas.

Nada, porém, que afete a doçura de tudo o que passa pela tela. Meu Amigo Lorenzo é engraçado, comovente e inspirador. Para André Luiz de Oliveira, é mais uma demonstração de que o seu cinema é atravessado pelo desejo de transcender a própria arte e chegar a um lugar de pura nobreza humana.

>> Meu Amigo Lorenzo está nos cinemas.    

 



Uma mulher em “movimento aberrante”

“Só os lokos sabem” – afirma a camiseta usada por Viviane de Cássia Ferreira em algumas fotos mostradas em As Linhas da Minha Mão. O filme de João Dumans (diretor de Arábia junto a Affonso Uchoa) sai em busca de um discurso especial, uma experiência aguda de consciência sobre a própria loucura.

A atriz e performer Viviane, do grupo mineiro de criação e saúde mental Sapos e Afogados, lida há mais de 30 anos com o transtorno de bipolaridade. João Dumans limita-se a ouvi-la numa sucessão de falas e conversas espontâneas, nas quais transparece, luminoso, seu profundo autoconhecimento. É o que a faz definir-se como uma “performer entre arte e vida”.

A rigor, ficamos sabendo pouco do que seja a sua arte. Em compensação, ouvimos um bocado sobre sua vida: o impacto da morte recente da mãe em 2021, histórias de solidão, surtos psíquicos, arrebatamento sexual, recusa à obediência e sua opção por se manter sempre “em movimento aberrante”.

No fluxo de seus relatos, imaginação, mitomania e realidade se confundem, envolvendo nomes de compositores famosos, músicas e considerações filosóficas trazidas por uma conversa sobre Nietzsche.

Viviane é inteligente, elegante e tem uma criatividade alimentada pela liberdade que só a loucura traz, especialmente quando se encontra com a arte.

As Linhas da Minha Mão ganhou a mostra principal de Tiradentes, um tanto pelos seus méritos, mas principalmente por compartilhar um ethos artístico e uma “tribo” muito habituês da mostra mineira. A meu ver, o documentário elabora pouco sobre a subjetividade de Viviane, fugindo tanto a mostrá-la fora da sua própria ótica, quanto do mundo que a rodeia. Tudo em volta está fora de foco. Viviane está praticamente sozinha no filme. Às vezes é fascinante ouvi-la, mas será o bastante?   

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