Sentado no meio-fio de uma rua de Ipanema, esperando a van noturna para Santa Cruz, o garoto Marcus Vinícius imaginava a Ipanema solar dos filmes e dos livros. Essa ele não tinha coragem de frequentar, moleque de periferia que aprendeu a viver no trânsito entre as várias Zonas da cidade. Hoje Marcus Vinícius Faustini é cineasta, autor teatral, animador cultural e Secretário de Cultura de Nova Iguaçu. Acima de tudo, é um cara que transpira entusiasmo e boas ideias pelas quebradas do Rio.
MVF tem uma maneira única de ver o subúrbio e a Baixada: com humor, poesia e verve ficcional. Isso é o que encontramos no seu primeiro livro, Guia Afetivo da Periferia, da ótima Coleção Tramas Urbanas (Ed. Aeroplano/Petrobras). Autobiografia precoce, sem dúvida, mas imune à pretensão de ser “grande livro”. A informalidade das anotações dá o sabor do texto, que não se prende a cronologias ou métodos. É mais uma etnografia de ruelas, armazéns, menus humildes, remédios, TV aberta. São memórias de andanças, trabalhos, leituras, descobertas, amizades, sonhos de namorar “uma caixa da Mesbla que gostasse de cinema francês”. Um moço fazendo pontes entre a cultura e a vida simples, a realidade e a imaginação.
Também de infância muito pobre, gostei de encontrar onde minha história se cruzava com a de MVF. Entre os muitos empregos dele, por um tempo houve o de “menor auxiliar” (contínuo) do Banco do Brasil, ofício que eu havia desempenhado muitos anos antes em outro banco. Enquanto ele subia e descia as escadas do BB, eu lá trabalhava como redator de uma revista sobre comércio exterior. Mais tarde, ele passou a frequentar o cinema do CCBB, que eu programava. Estivemos durante muito tempo próximos, sem que eu o conhecesse.
No Guia Afetivo da Periferia há um pouco de todo mundo. Mas principalmente de gente como Marcus Vinicius, que retempera e eleva o seu meio pelas artes da observação e da invenção. O livro é bem escrito, bem-humorado e bem ilustrado. Entre as frequentes decolagens poéticas do autor, destaco esse trecho de epifania durante uma viagem de ônibus, quase uma síntese de todo o percurso de MVF:
Autoviação
Já rodei quase uma noite inteira dentro do 415 chorando. A dor era grande. A maior que senti até hoje. Era como não ter pulmão para respirar. Estava tudo ali, naquela dor. Parecia a última que eu sentiria. Não sei exatamente como, mas uma saudade contundente de meus avós me ocupou. Chorava no percurso e não conseguia sair do ônibus. Ao longo do repetido caminho, apesar das lágrimas e do buraco em meus pulmões darem a constatação física do tamanho de minha dor, eu desconfiava dela. Passando mais uma vez pelo Aterro, olhando entre as lágrimas, do alto dos prédios, as luzes dos outdoors do Passeio e da Avenida Beira-Mar ficaram mais belas naquele instante. Meus olhos se concentraram neles e comecei a imaginar como contaria o que estava sentindo. Imaginei uma frase que poderia escrever sobre aquele pequeno instante onde sentia aquela dor e ao mesmo tempo aquela beleza. Ensaiava como a falaria. Experimentei ali, pela primeira vez, um prazer em organizar a dor de existir. Com o ônibus já cruzando a Avenida Presidente Vargas, um autorretrato na janela se configurou. Não me perdoei. Sentir tamanha dor, chorar e ao mesmo tempo me descolar e ver beleza na cidade… A dor passou. O que se passa na cabeça das pessoas que cruzam a cidade pela madrugada dentro dos ônibus? Será que a cidade invade o lugar de seus pensamentos? Como cada um constrói sua Autoviação?
Lindo livro! Já disse ao MVF que pode virar um lindo filme ou série para TV.
Abraços.
Vinícius.
É verdade, Vinicius, e é a tua cara! Sentem juntos e escrevam o roteiro.
Que história de vida sensacional. Indo ao CCBB na proxima terca, comprarei. Ate la, se tudo sair como imagino, o livro do Ely ja tera entrado na conta. Beijos. P.S. Sai à francesa ontem por conta da pré do Jards Macalé, e o abraço ficou no vento. E na chuva.