“Vazante” é mais sobre gênero do que sobre raça

No último Festival de Brasília, VAZANTE foi crucificado num momentoso debate em que Daniela Thomas carregou todas as culpas pelo histórico predomínio dos brancos no cinema brasileiro. Até a beleza plástica e sensorial do filme foi acusada de veicular a opressão das vozes negras pelo aparato do poder econômico branco. Com isso, exacerbou-se uma leitura racial em detrimento de um crítica mais particularizada àquilo que VAZANTE tem de mais frágil.

Se reduzirmos o filme a seu enredo e formas de representação, não resta muita diferença em relação a uma novela das seis, daquelas de antigamente. Quantas vezes já não vimos as relações de perversidade e exploração dos escravos pelos seus senhores no Brasil do século 19? Quantas vezes já não vimos escravos sendo maltratados e logo procurados por sinhôs e sinhazinhas para saciar seus desejos?

O tropeiro Antonio, dono de terras e almas, retorna de viagem e encontra a mulher recém-falecida no parto, junto com a criança. Pouco tempo depois se casa com Beatriz, sobrinha da falecida, menina prepubescente. Esta alimenta flertes clandestinos com o jovem filho da escrava que presta serviços sexuais a Antonio. O cruzamento trágico desses destinos não fica difícil de prever quando ambas as mulheres engravidam.

Daniela e seu corroteirista Beto Amaral pontuam a narrativa com imagens emblemáticas de interação física entre senhores e escravos. Já na primeira sequência, vemos uma parteira negra ajudando o parto malsucedido da primeira mulher de Antonio. Os contatos rudes entre o tropeiro e sua escrava sexual contrastam com o toque terno do menino negro no corpo da moça branca. Isso sem falar na imagem final, que foi erroneamente tachada de “conciliadora” quando na verdade é o arremate de uma tragédia aos moldes gregos.

Nesse retrato bastante veraz de um contexto histórico, há lugar para diferentes perfis de brancos e negros. Na casa grande reina um clima de demência, explicitado na condição mental da matriarca, mas presente também no olhar taciturno e indevassável de Antonio, assim como na passividade sacrificial de Beatriz. Entre os negros, há desde a insubmissão do escravo africano de idioma desconhecido até a docilidade dos serviçais e a pusilanimidade dos capatazes.

A questão escravocrata é evidente, mas foi minha mulher quem me chamou a atenção para uma leitura que parece ter escapado a muita gente: VAZANTE é muito mais um filme sobre gênero do que sobre raça. O que ele mostra são mulheres sendo reduzidas a objetos e colocadas à margem do quadro social. Beatriz, apesar de branca, é tão escravizada quanto qualquer negra. É equiparada a uma boneca, que recebe de presente do marido antes da primeira noite de sexo, e tem sua maternidade agredida da maneira mais brutal.

Não se trata de comparar sofrimentos, pois não têm mesmo comparação. Mas é preciso situar o filme dentro de uma perspectiva que lhe seja própria. Todos os personagens são extremamente tristes, embora haja tristezas bem diferentes. A “pequena” tragédia dos brancos, embora esteja à frente, parece quase insignificante diante da grande tragédia dos escravos. Se VAZANTE não é uma narrativa revolucionária, como pretendia ser Ganga Zumba, nem um filme de protagonismo negro, tampouco é um mero reprodutor de estereótipos conservadores. Pode ser um tanto anacrônico, é verdade, mas tem o desejo evidente de expor as vísceras de uma época.

Para isso, a magnífica fotografia em preto e branco de Inti Briones, a direção de arte premiada de Valdy Lopes Ferreira e a minuciosa ambientação sonora nos sintonizam perfeitamente com a rusticidade que se imagina na Diamantina de 1821. Os silêncios profundos dos personagens e do lugar ecoam o laconismo das relações sociais, a ausência de diálogo como ferramenta de negociação da vida, a inércia de um tempo frequentemente morto.

A estrutura lacunar e o estranho tratamento do tempo em algumas passagens exigem do espectador um certo esforço de preenchimento, o que não é de todo mau. A mudança do ciclo da garimpagem para o da lavoura e da pecuária faz o pano de fundo para uma história que encontra sua maior expressividade na escala dos gestos humanos desnudados de toda retórica.

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