Escravos de sempre e moderninhos de hoje

Todos os Mortos e Verlust, exibidos na Mostra de SP, acentuam meu desalento quanto ao cinema de ficção brasileiro mais recente 

Escravidão sem fim

Ando bem pouco animado com o cinema de ficção brasileiro recente. Alguns podem pensar que é má vontade minha para com o cinema de ficção em geral, uma vez que me dedico muito aos documentários, mas não. Ficções recentes da Turquia, do Irã, da Coreia, da Europa e mesmo alguns dos EUA têm me agradado profundamente. Mas as brasileiras, com poucas exceções, me parecem pálidas, engessadas e cheias de pretensões que não se realizam como dramaturgia.

Agora mesmo tive uma relativa decepção com o festejado Todos os Mortos, escrito e dirigido a quatro mãos por Caetano Gotardo e Marco Dutra. A coprodução com a França tem todos os cuidados técnicos que nos habituamos a ver em filmes como As Boas Maneiras e Vazante – da fotografia da francesa Hélène Louvart (A Vida Invisível) ao desenho sonoro de Ruben Valdés. Esses talentos, porém, estão a serviço de uma narrativa morosa e descarnada, apesar de tratar de um tema dos mais densos.

A partir da morte de uma ex-escrava já idosa (vivida pela cantora Alaíde Costa, premiada em Gramado por poucos minutos de atuação), adentramos a vida de duas famílias na São Paulo de 1899. Os Soares são donos de uma fazenda de café em estado falimentar, cuja decadência se expressa física e espiritualmente nos seus integrantes. A mãe tem episódios de paralisia vertebral e impulsos masoquistas. A filha mais velha é uma freira autoritária e cruel. A mais nova tem mania de enterrar coisas e vê fantasmas de escravos mortos. A fim de tentar minorar seus problemas, a Irmã Maria convoca uma ex-escrava e seu filho pequeno para que encenem um ritual africano na casa senhorial.

O contraste maniqueísta fica posto sem meias tintas: os negros da família Nascimento são íntegros, nobres e racionais, enquanto os brancos Soares são desequilibrados, perversos e deslocados no tempo. A escravidão estava abolida já havia dez anos, mas os Soares não parecem perceber. Lamentam a perda dos serviçais, o que é tomado como um abandono. Ainda tentam explorar o que restou de seu poder econômico, pedindo aos negros que trabalhem, cantem e sejam simpaticamente exóticos. Em seu oportunismo patético, querem usar a fé dos pretos ainda “disponíveis” como um teatrinho a seu serviço.

A meio caminho das duas horas de projeção, os personagens continuam os mesmos, mas saltam 100 anos no tempo para uma São Paulo contemporânea. Ao que parece, Gotardo e Dutra pretenderam expor a permanência das relações escravocratas na atualidade, mas o dispositivo não surte efeito visível, soando apenas gratuito e conceitual.

A presença de Leonor Silveira num papel coadjuvante traz à lembrança os filmes de Manoel de Oliveira, possível inspiração para o estilo empertigado da encenação, o uso do português castiço e os ares soturnos da casa dos Soares. Infelizmente, não é simples emular o mestre lusitano. Tudo é explicitado em diálogos, sem muito espaço para uma narrativa visual. Por outro lado, a solenidade teatral esvazia a humanidade dos personagens, à exceção de Maria (Clarissa Kiste) e da ex-escrava Iná (Mawusi Tulani), muito por conta da boa performance das atrizes.

Um punhado de boas intenções se atropelam em Todos os Mortos. Há, por exemplo, o comentário sobre a ascensão interracial com o mestiço interessado em se unir à moça branca, para isso usando Cruz e Souza como passaporte de conscientização. Ou a tentação de Maria em acreditar na religiosidade africana. Refletir a partir desses elementos enquanto pura especulação pode ser mais proveitoso do que vê-los como cenas de consistência vacilante.

 

 


Os sofisticados e a baleia encalhada

Desapontamento ainda maior veio com Verlust, o novo filme de Esmir Filho (Tapa na Pantera, Os Famosos e os Duendes da Morte, Alguma Coisa Assim). Este é um diretor caprichoso na formatação visual e sonora de seus trabalhos, mas que parece decrescer, filme a filme, em termos de substância dramática. Verlust entra em cartaz logo depois da Mostra de SP, a 5 de novembro.

O título Verlust brinca com os significados alemães de perda (Verlust) e desejo (lust), os dois conceitos nos quais estariam enredados seus personagens. São eles uma empresária do ramo musical (Andrea Beltrão), seu marido fotógrafo (o chileno Alfredo Castro, ator frequente de Pablo Larraín), a filha contrabaixista clássica (Fernanda Pavanelli), uma cantora que passou por um grande trauma (Marina Lima, em papel semi-autobiográfico) e um escritor que estaria preparando a biografia da cantora mas na verdade está escrevendo outra coisa (Ismael Caneppele, corroteirista junto com Esmir Filho).

Reunidos numa magnífica casa de praia, eles trocam farpas, amabilidades, beijos e, à exceção da menina, fazem sexo de forma não binária, pois afinal são gente moderna e sofisticada. Caminha-se muito pela casa, de maneira a que o brilhante fotógrafo Inti Briones possa captar, de dentro e por fora, a arquitetura e a decoração chiques. Os figurinos não ficam atrás em requinte ligeiramente ousado, pois afinal são gente moderna e sofisticada (desculpem se já tinha dito isso, mas é para reafirmar).

A insatisfação incomoda tanto Frederica, a empresária, quanto a luz que o descerramento das cortinas automáticas deixa entrar no quarto de manhã. Frederica não aceita perder nada na vida, mas está prestes a ter seu contrato rompido pela cantora Lenny, que quer seguir carreira independente. De resto, não há muito o que dizer sobre o personagem bisonho de Alfredo Castro, expulso do filme sem mais nem menos. Ou de Caneppele, que parece ter esquecido de dar para si mesmo um papel minimamente lógico.

Verlust apela a fetiches como o voyeurismo e a androginia. Usa clichês como o do escritor provocante e da instrumentista que fala por meio do seu instrumento. Recorre a metáforas como o Ano Novo significando renovação e, metáfora das metáforas, uma baleia que encalha na praia diante da casa, fulgurante de neon (uma obsessão na filmografia do diretor) e de supostos significados. Estarão todos encalhados em seus impasses de alta classe ou simplesmente não conseguiram se salvar de tanta afetação e tanto vazio?

 

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