Festival do Rio: “Benedetta”

Recomendo a quem for ao festival algumas medidas essenciais: lembre-se de levar o seu comprovante de vacinação, que pode ser o certificado digital do ConecteSUS ou o comprovante em papel. Sem isso, a entrada nos cinemas não será permitida. Chegue de máscara e mantenha-a cobrindo o nariz e a boca durante todo o filme. Procure guardar o maior distanciamento possível entre as poltronas ocupadas.

Seja num policial como Instinto Selvagem, seja num drama de strippers em Showgirls ou ainda num caso de estupro como Elle, Paul Verhoeven volta e meia encontra um contexto para exercitar seu gosto pela transgressão de caráter sexual e espalhar um perfume de escândalo. Dessa vez, ele foi colher num romance baseado em fatos da Renascença o tempero para mais uma provocação.

A freira Benedetta Carlini foi condenada na Itália do século XVII por sacrilégio e lesbianismo. Benedetta, o filme, baseia-se livremente em livro recente de Judith Brown e põe em destaque os aspectos mais chamativos do caso. Levada ainda criança pelos pais para um convento na cidade de Pescia, Toscana, a fervorosa Benedetta (Virginie Efira) cresce e passa a ter visões e sonhos em que sofre perseguições e é seguidamente salva por um Jesus guerreiro e sedutor. O amor por Cristo ganha tonalidades eróticas, que vão ser canalizadas na relação com outra jovem noviça (Daphne Patakia) encarregada de cuidar dela.

Verhoeven é razoavelmente explícito na representação desses contatos, ainda que sempre preservando as conotações religiosas. Os seios, por exemplo, são externalizações do coração. A imagem da Virgem é de várias maneiras engajada não só na sugestão (a estátua que cai deitada sobre o corpo de Benedetta), como na própria execução do ato sexual.

A possessão mística, objeto de mitificações milenares, é mostrada como algo indiscernível entre a fraude e o milagre. Benedetta surge com estigmas (stigmata), ou seja, ferimentos que coincidem com os infligidos a Cristo no seu martírio. A discussão sobre a fidedignidade do fenômeno faz a trama do filme avançar. É onde entra um dos subtemas mais interessantes, qual seja o mercantilismo da Igreja na Renascença. O convento fatura com a absorção de moças de famílias ricas e com a repercussão de supostos milagres. A abadessa vivida por Charlotte Rampling é o pivô de uma das grandes reviravoltas da história de Benedetta.

Verhoeven esticou os fios da afronta ao nível do que poderíamos chamar de nunxploitation. Mas não se pode negar que Benedetta toca habilmente em várias feridas da história europeia, incluindo farsas e hipocrisias religiosas, intolerâncias do poder eclesiástico, sado-masoquismo, perversões, repressão, sublevação e fanatismo. A peste que ameaça Pescia tanto pode ser uma suposta maldição divina quanto o sinal decisivo de que Benedetta sabia combinar a lascívia com a santidade.

Deixe um comentário