Jogo de cena com a polícia mexicana

UM FILME DE POLICIAIS na Netflix

Para quem acha que as possibilidades de hibridismo entre documentário e ficção estão esgotadas, Um Filme de Policiais (Una Pelicula de Policías) é uma grande e grata surpresa. O filme de Alonso Ruizpalacios (Güeros, Museu) mereceu o prêmio de melhor contribuição artística do Festival de Berlim pela forma como a montagem de Yibran Asuad entrelaça os dois registros de maneira brilhante, excitante e divertida. Mas os méritos estão repartidos por todos os setores do longa.

A atriz Mónica del Carmen é quem primeiro nos persuade no papel da policial Teresa durante uma ronda noturna pelos quarteirões da Cidade do México. Ela acaba socorrendo uma mulher em trabalho de parto, ocasião em que o documental e o ficcional se mesclam à perfeição. Mais adiante entra em cena Montoya (Raúl Briones), com quem Teresa forma uma dupla profissional e romântica, a chamada “Patrulha do Amor”.

Mais do que isso convém não revelar para não roubar o prazer das descobertas pelo espectador. Basta dizer que Teresa e Montoya existem de fato e estão no filme. Os atores os representam de maneira literal, muitas vezes dublando suas falas. Em dado momento, Ruizpalacios “abre o jogo”, deixando o processo de construção do filme ficar transparente para o público. Mónica e Raúl passaram 101 dias treinando numa academia de policiais e na Universidade de Polícia da capital mexicana para adquirir condições físicas e absorver o espírito do ofício.

O processo de imersão teve uma dupla função, de mimetismo e crítica. Assim o filme consegue reproduzir, sempre no limiar entre o factual e o ficcional, uma série de procedimentos do trabalho policial. Em se tratando de México, o principal é a corrupção, tão corriqueira quanto o cafezinho entre uma operação e outra. Vemos as saídas de viatura para colher propinas de transgressores no trânsito e pequenos criminosos (os “rateros“). Testemunhamos a corrupção interna, quando os agentes da lei precisam molhar a mão de colegas para receber mais munição ou um colete de proteção mais eficaz. O sistema se mantém por esse fluxo de dinheiro correndo na cadeia alimentar da corporação, do infrator ao guardinha e daí aos superiores.

Atores e policiais se revezam em reflexões sobre a condição de cada lado. No fundo, são parecidos, já que a performance é parte da realidade dos agentes da lei para sustentarem sua imagem perante a sociedade. As queixas se referem ao pouco tempo de preparação (apenas seis meses) para missão tão delicada, aos baixos salários, à sensação de que ninguém se importa com as mortes de policiais no enfrentamento da criminalidade.

De certa forma, o filme propõe uma humanização da figura do policial, o que costuma despertar polêmica. No Brasil, o cineasta Marcelo Pedroso chegou a tirar de circulação o seu filme Atrás da Linha de Escudos, que tentava ouvir policiais de Pernambuco e mostrava o diretor se submetendo a práticas da corporação. Foi injustamente acusado de conivência com a força policial, quando na verdade usava uma estratégia para “filmar o inimigo”. A polícia brasileira é considerada inimiga pela violência praticada contra populações pobres e em sua maior parte negras, e contra manifestantes de causas progressistas.

Um Filme de Policiais não politiza a questão, a não ser nas imagens de repressão a manifestantes nos créditos de abertura e numa rápida menção do ator Raúl Briones. Não fosse por esse senão, seria uma obra-prima. As ilustrações ficcionais lembram o estilo de Errol Morris. A narrativa, inteligentíssima, funde tempos e brinca com as potencialidades do relato oral. Mónica/Teresa e Raúl/Montoya falam de sua vida pregressa em meio às ações do trabalho, emendando a narração em diferentes situações e cenários. Como casal, tornam-se personagens irresistíveis de comédia.

A fotografia de Emiliano Villanueva é primorosa no jogo expressionista de luzes dos carros de polícia e na captação de uma Cidade do México ora vibrante, ora soturna. As trilhas sonoras de Lalo Schifrin para filmes e programas de TV dão um toque de sátira policial – o que também não deixa de ser. Circulando de um gênero a outro, essa obra é tão fascinante quanto inclassificável.

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