Monólogos do corpo e da memória

SEUS OSSOS E SEUS OLHOS

Embora esteja sendo lançado só agora, três anos depois de realizado, Seus Ossos e seus Olhos foi o segundo longa-metragem dirigido por Caetano Gotardo, em seguida ao tocante O que se Move. Depois disso ele já fez Todos os Mortos e Você nos Queima. Em Seus Ossos e seus Olhos, ele dá continuidade a uma busca bastante pessoal e que já aparecia em Você nos Queima: a maneira como o movimento dos corpos diz alguma coisa a respeito de memória, emoção e imaginação.

Nesta espécie de filme-ensaio ficcional, Gotardo é um cineasta que está montando o próprio filme que estamos vendo. Seu corpo dá mostras de desconforto e obsessão, como na cena em que ele não encontra posição confortável para se deitar num tapete ou nos momentos em que manipula partes do corpo compulsivamente. Um misto de ginástica e performance com os braços o deixa exaurido. Na rua ele observa jovens ensaiando dança de rua. Quando se encontra com o namorado (Vinicius Meloni) ou com um amante ocasional (Carlos Escher), os casais se enroscam asperamente na cama. Há um misto de ternura e rispidez nesses contatos, além de uma profunda compreensão mútua, que é também o que o une à amiga Irene (Malu Galli).

Cada um desses encontros dá lugar não propriamente a diálogos, mas a uma sucessão de monólogos de qualidade literária, nos quais os personagens desfiam lembranças de experiências passadas, sejam elas de amor, de medo ou de trauma. Cita-se Górki, Tchekhov, Meyerhold, Chris Marker, o pintor Almeida Júnior e principalmente o cineasta coreano Hong Sang-Soo. Este não é mencionado nominalmente, mas estilisticamente quando as cenas e diálogos começam a se repetir com variações.

A mim pareceu que se trata aqui de comentar os desvãos da memória – o quanto ela tem de vulnerável e ao mesmo tempo o quanto ela forja o nosso presente. Em contrapartida, os corpos são sólidos, mesmo quando vistos em fragmentos, assim como se costuma destacar os detalhes de um quadro para se entendê-lo melhor.

Gotardo investe no naturalismo vocal, mas, curiosamente, engessa as modulações de voz que seriam próprias da fala natural buscada. Com isso, os monólogos soam monocórdicos na maior parte do tempo, o que se agrava por serem longos. De qualquer maneira, não deixa de ser uma escolha bem definida para tocar um filme composto quase que só por relatos orais. A materialidade dos corpos se encarrega do contraponto.

>> Seus Ossos e seus Olhos está nos cinemas.

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