Homenagem cifrada a um clássico

ONDE FICA ESTA RUA? OU SEM ANTES, NEM DEPOIS

O Cinema Novo português foi disparado em 1963 por um filme de amor melancólico. Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, tratava de Júlio, um jovem provinciano que vai tentar a vida em Lisboa e se apaixona por uma empregada doméstica. O rapaz, porém, não consegue se ajustar à vida da cidade moderna e se apega ao desejo de casar-se com Ilda, que rejeita a ideia. O desfecho é chocante e quase absurdo em termos de lógica dramatúrgica. Mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, o filme grudou na memória portuguesa e tornou-se um clássico.

Quase 60 anos depois, João Pedro Rodrigues (em cartaz no Brasil com Fogo-Fátuo) e João Rui Guerra da Mata assinam uma pretensa homenagem a Os Verdes Anos por meio de uma revisita a suas locações lisboetas. O documentário Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes, Nem Depois parte de uma motivação fetichista, mas recusa-se a fazer analogias diretas com o filme de Paulo Rocha. Por isso é essencial tê-lo vivo na memória para que a experiência resulte minimamente interessante. Os Verdes Anos pode ser visto gratuitamente neste link.

Os dois Joões se amparam basicamente no belo e conhecido tema musical de Carlos Paredes, repetido quase à exaustão nos dois filmes. Lançam um olhar oblíquo, contemplativo e lânguido sobre uma Lisboa cuja paisagem, desde 1963, mudou consideravelmente. Predominam hoje as ciclovias, os entregadores de aplicativo, a presença maciça de imigrantes africanos, as paredes cobertas de pichações e os signos visuais e sonoros do distanciamento social provocado pela Covid-19. Incluindo a suspensão do Rock in Rio Lisboa de 2020.

Em ritmo lento e hierático de cinema estrutural, a câmera vasculha algumas locações de Os Verdes Anos: o parque onde o casal fazia seus passeios, o apartamento dos patrões de Ilda agora convertido num escritório repleto de papelada, o bar retrofitado, o terraço panorâmico do elevador de Santa Justa, os murais da Faculdade de Direito, um bebedouro e, sobretudo (como ponto recorrente), o porão onde ficava a sapataria em que Júlio trabalhava.

Tudo isso faria um belo ensaio sobre permanência e transformação caso as imagens de hoje fossem justapostas às cenas do clássico. Como isso não ocorre em nenhum momento, quem não guarda a lembrança fica impossibilitado de apreciar as intenções dos diretores. Mesmo para quem se lembra (e eu me dispus a rever Os Verdes Anos imediatamente antes), esse retorno parece um capricho sem muito sentido.

Como retrato de uma cidade, é aleatório, rarefeito, repetitivo e idiossincrático. As inserções de beijo gay e de um crossdresser apenas atendem às fixações habituais de João Pedro. O filme diz a que veio nas duas cenas musicais em que reaparece (ou ressuscita) a Ilda de Os Verdes Anos na pele da agora idosa atriz Isabel Ruth. São belos momentos em que o cinema recupera sua aura, mesmo para quem não mais se recorda do filme de 1963.

Na elipse gigante que constitui esse documentário, desaparece até mesmo a compreensão do título, referente a duas passagens de Os Verdes Anos. “Onde fica esta rua?” era uma pergunta de Júlio ao chegar em Lisboa. “Sem antes, nem depois” era frase da letra de uma música que tocava quando o casal dançava coladinho.

>> Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes, nem Depois está nos cinemas.

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