Pai, filha, irmãos

Resenhas de NADA SOBRE MEU PAI e ALMAS GÊMEAS

Todos os pais possíveis

Ele era equatoriano, de esquerda e tinha uma marca de tiro na perna. Isso é tudo o que a cineasta Susanna Lira diz saber sobre seu pai, que a concebeu numa passagem pelo Brasil na juventude, quando fugia da repressão no Equador usando um provável pseudônimo. Com essas ralas credenciais, Susanna embarcou para Quito num documentário de busca (para usar a nomenclatura de Jean-Claude Bernardet).

A origem desse desejo vem, segundo ela, de um trabalho escolar em que a filha não sabia o que botar em um lado da árvore genealógica da sua família. Em Quito, seguindo algumas pistas, ela tem vários encontros com veteranos esquerdistas que bem poderiam ser o homem procurado. Coloca anúncios no jornal, vai a programas de rádio e televisão – um dos quais faz questão de filmá-la como se estivesse “perdida” na cidade à procura do pai. Bem o oposto do que Susanna pretendia com seu filme.

Para fugir à narração em primeira pessoa, ela optou por um estilo de filmagem falsamente clandestina. Há quase sempre uma instabilidade na imagem, um encobrimento parcial, alguma interposição entre a câmera e o objeto da cena. Essa escolha reflete a condição do filme em sua própria linguagem. Trata-se de investigar algo nebuloso, como é a circunstância de tantos filhos e filhas brasileiras que foram criados pelas mães sem nunca terem conhecido seus pais.

Num dado momento, Susanna é flagrada chorando e lamentando ter tido um pai que a trocou pelo coletivo. Mas é verdade também que a cada conversa sobre ética, memória e ideais, ela encontra uma versão possível do pai rastreado. A noção de paternidade, então, se alarga poeticamente, e isso é muito bonito.

Um desses homens é o grande documentarista equatoriano Pocho Álvarez, com quem ela inspeciona filmes na cinemateca de Quito. As memórias das lutas populares contra governos ditatoriais, esparsas no cinema incipiente do Equador, trazem a questão da identidade nacional, algo também incipiente no país.

Pai e país, filhos e filmes se confundem na busca de Susanna por alguma coisa que ela talvez não desejasse mesmo encontrar. Ou apenas almejasse a satisfação de aceitar o indefinível.

>> Nada sobre meu Pai está passando na CineBrasil TV.

ESTREIA: 09/12/2023 | SÁBADO | 21:30 

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As duas vidas de David

O veterano André Téchiné, um dos mais regulares auteurs do cinema francês desde a década de 1960, volta a lidar com temas pesados em Almas Gêmeas (Les Âmes Soeurs). Relações familiares conturbadas, ambiguidades de gênero, impulsos suicidas… O coquetel é denso. Mas Téchiné não se intimida. Conduz o filme com a objetividade possível para assuntos tão marcados pela subjetividade.

Jeanne (Noémie Merlant) e David (Benjamin Voisin) são meio-irmãos muito unidos. Ele está nas tropas francesas que intervinham no Mali desde 2013 quando seu veículo é atingido por uma mina terrestre e ele sofre queimaduras gravíssimas. É repatriado e, após um período de recuperação hospitalar, é cuidado por Jeanne na a casa da família nos Pireneus. David sofre de amnésia e de paranoia sanitária. Recusa-se a se reconectar com sua “vida anterior”.

A ausência de memória serve ao rapaz como passaporte para uma “nova vida” pós-trauma. Mas nem tudo ficou somente no passado. Além do amor pelas motocicletas, uma certa pulsão de antes retorna no presente para complicar sua relação com a irmã.

Téchiné cria um estranho paralelo entre a confusão mental de David e a depressão que acomete Marcel, o senhorio da casa (André Marcon), homem maduro em decadência financeira que tem um certo hábito extravagante. Entre uma geração e outra, o denominador comum é a insatisfação com o papel que lhes foi dado desempenhar na vida. A explosão no Mali e a perda de Marcel do seu lugar no mundo contrastam com a vocação de Jeanne para o resgate. A força dela para vencer as ondas do destino é um testemunho do poder feminino. Outro tema caro a André Téchiné.

>> Almas Gêmeas está nos cinemas.

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