Herzog no teatro dos sentimentos

UMA  HISTÓRIA DE FAMÍLIA na mostra Herzog Além das Margens

Pode não ser um novo F for Fake, mas Uma História de Família (Family Romance, LLC) tem um bocado a dizer sobre a confusão cada vez maior entre o falso e o verdadeiro, entre o real e seus simulacros. Werner Herzog contratou como protagonista o empresário Ishii Yuishi para representar o seu próprio papel. Yuishi dirige uma empresa de Tóquio, a Family Romance, que há mais de dez anos aluga pessoas substitutas. Fenômeno exclusivamente japonês (até onde se saiba), atores são contratados para fazer o papel de maridos, amigos e toda sorte de papéis sociais.

Yuishi, naturalmente, foi providencial na escolha do resto do elenco para dramatizar casos reais ou inventados por Herzog no espírito da empresa. O fio condutor é a relação de Yuishi com Mahiro (Mahiro Tanimoto), uma menina triste cuja mãe o contrata para fingir ser o pai que ela não chegou a conhecer. Ao longo do filme, acompanhamos os passeios de “pai e filha” por parques e lugares turísticos de Tóquio, numa convivência a princípio formal, mas que aos poucos vai ganhando densidade. Para Yuishi, a questão é medir até onde vai o seu envolvimento com Mahiro e com a mãe dela, uma vez que o estatuto da empresa proíbe os sentimentos de verdade.

A Family Romance (no filme e na vida real) vende simulações, inclusive de sentimentos. Assim como a relação com Mahiro se baseia num suposto serviço verídico que se estendeu por vários anos, outros episódios também copiam a realidade. A contratação de um falso pai para acompanhar a noiva num casamento, por exemplo. Ou de um falso empregado para levar a culpa e se curvar diante do chefe no lugar daquele que cometeu um erro. Ou ainda a consulta a uma casa funerária com vistas à simulação de um morto. Herzog pegou carona no modelo para criar sequências como a da mulher que contrata Yuishi para reviver a alegria de receber um grande prêmio; ou a que desfila numa rua seguida por falsos paparazzi a fim de parecer famosa e viralizar nas redes.

Herzog empunhou ele mesmo uma pequena câmera 4k para filmar quase todas as cenas. Daí Uma História de Família ter um look de coisa improvisada, gravada espontaneamente nas ruas como se fosse um documentário, com decupagem pobre e pouco acabamento de pós-produção. O foco do diretor não estava na forma, mas no conceito deslizante que perpassa o filme inteiro.

Um dos terrenos prediletos de Herzog é a fronteira entre realidade e ficção. Num dado momento do filme, Yuishi visita um hotel robótico cujos recepcionistas e até os peixes do aquário são robôs. Em outro, Mahiro se surpreende ao ver que o homem que fazia o favor de fotografá-la com Yuishi num parque, na verdade, era um agente a serviço de Yuishi. Em contrapartida, durante conversa com uma cliente, o empresário garante que seus atores não são imitadores. “Nós só fazemos o que somos de verdade”.

Essas diversas camadas de representação extrapolam o filme e dão um nó na crença sobre tudo o que o envolve. Herzog se inspirou numa reportagem de 2018 da revista New Yorker sobre Yuishi e sua empresa. Quem acessar essa matéria vai se deparar com uma nota do editor, escrita um ano depois, desculpando-se pelo engodo de que o repórter foi vítima. Duas pessoas apresentadas como clientes da Family Romance mentiram extensivamente para a reportagem.

É da natureza dos simulacros ter dois lados: o que ilude e o que satisfaz. Os japoneses encontraram uma forma de se confortar com sentimentos encenados, nem que seja para cumprir certas formalidades ou mesmo para suprir carências. De outra parte, cabe nos perguntarmos quanto de nossas convivências familiares, afetivas e profissionais se nutre de representações e ilusões. No seu exame de consciência final, Yuishi se interroga: “E se toda a minha família for de agentes contratados?”.

Recomendo essa pequena mas esclarecedora entrevista de Herzog à Mubi (em inglês, com a opção de legendas automáticas em português).

>> Uma História de Família passa na Caixa Cultural na quarta-feira (20/12), às 18h.

O trailer do filme:

3 comentários sobre “Herzog no teatro dos sentimentos

  1. Pingback: No risco do jogo de cena | carmattos

  2. Não vi ainda o filme do Herzog, que deve ter mais sensibilidade, mas algo parecido dessa inusitada ideia vi em Alpes, do Lanthimos.

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