Notas sobre SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO e PRAIA DA SAUDADE

Mergulho em águas rasas

Numa cena de Segredos de um Escândalo (May December), a atriz Elizabeth (Natalie Portman) é entrevistada por jovens alunos de teatro um tanto insolentes. Um deles tenta desconcertá-la perguntando como é filmar cenas de sexo. Ela o desconcerta de volta, explicando que nem sempre se limita à técnica. Às vezes rola uma química e ela se deixa levar. Ou seja, nem tudo é mera representação quando se trata de atingir a “verdade” da cena.

Essa mesma postura Elizabeth está levando na preparação do seu novo trabalho: interpretar uma mulher que, aos 36 anos, foi flagrada transando com um menino de 13 anos, foi presa, teve um filho no cárcere e continua hoje vivendo com o mesmo rapaz. Um fait divers sensacionalista que, 24 anos depois, ainda rende mensagens de ódio dirigidas a ela.

Elizabeth vai passar uma temporada com Gracie (Julianne Moore) e Joe (Charles Melton) a fim de absorver melhor a personalidade da sua modelo. Vai lidar, então, não só com o autoengano que alimenta o casal, mas também com a sua própria tendência a fetichizar o vínculo entre atriz e personagem.

Todd Haynes é um cineasta de quem sempre se espera histórias complexas e criaturas às voltas com o psicossocial contemporâneo. Dessa vez, porém, colocando em cena um roteiro original alheio, ele ficou bem longe do seu melhor. Apesar da boa atuação das duas atrizes – Natalie mais bonita do que nunca –, a relação especular entre intérprete e modelo não se estabelece para além dos diálogos. A exceção é a  sequência em que Gracie maquia Elizabeth até as duas ficarem parecidas, algo que críticos apressados aproximaram de Persona, de Bergman. Mas não há ali qualquer tensão anímica comparável.

O passado de Gracie, assim como seus laços de família e as insinuações de que Joe e Elizabeth nutrem relações amorosas clandestinas, nada soma consistência a um simples escândalo de tabloide. Algumas cenas de ápice dramático chegam a ser constrangedoras, principalmente pelos recursos limitados de Charles Melton.

No fim das contas, Segredos de um Escândalo me pareceu uma abordagem leviana do método de incorporação de personagem por atriz. Não a de Julianne Moore na primeira instância, mas a de Natalie Portman na segunda, afetando um mergulho cênico em águas rasas. Para a impressão de déja vu contribui, ainda, a trilha musical baseada em variações do tema de Michel Legrand para O Mensageiro.

Nota: o título original May December se refere a uma gíria estadunidense para relações intergeracionais.  

>> May December está nos cinemas

Um desastre que vem de muito tempo

O novo documentário de Sinai Sganzerla, Praia da Saudade, está em cartaz no Estação Net Botafogo. Como fez em O Desmonte do Monte, Sinai recorre a uma pletora de arquivos históricos (fotos, filmes, pinturas) para falar das transformações sofridas pela paisagem brasileira. Entenda-se aí também a paisagem humana e ambiental.

A lenta catástrofe da orla de Atafona, no litoral fluminense, progressivamente invadida pela areia, é mostrada com uma profusão de imagens de drones. Uma paisagem de abandono e destroços, que fornece a metáfora incontornável de uma devastação que remonta aos tempos coloniais. Por trás das imagens, temos as falas da hoje ministra Sonia Guajajara e do biólogo e neurocientista Sidarta Ribeiro fazendo a conexão entre o massacre físico e cultural dos povos originários – especificamente os indígenas goitacases, que habitavam a região de Campos (RJ) –, e o uso predatório da natureza que levou aos desastres climáticos de hoje em dia.

A direção do documentário combina impulsos vanguardistas na tradição sganzerliana (montagem não linear, intervenções musicais díspares, tratamento sonoro extravagante) com um didatismo acautelatório sobre as consequências da predação dos recursos naturais e da desigualdade na distribuição de riquezas. Uma história de destruição, colapsos e ruínas da qual nos restaria um tipo estranho de saudade: a saudade daquilo que nunca chegamos a ser.

>> Praia da Saudade está no Estação Net Botafogo (Rio).