Um cinema de escuta e análise

Até pouco tempo atrás, cinco psicanalistas e uma antropóloga historiadora caminhavam pela cidade de São Paulo numa tentativa de escuta e aprendizado com aqueles que não têm lugar na sociedade. Compunham o coletivo Escutando a Cidade, que está em vias de se rearticular após a pandemia. Miriam Chnaiderman é uma dessas pessoas que não se contentam com o trabalho nos consultórios de psicanálise. “Nomadismo necessário”, diz ela, “em que, com um jeito a ser inventado, somos obrigados a pensar a clínica a partir do contato com o asfalto, com a poeira, com os acordes dissonantes da contemporaneidade”.

Foi essa pulsão de descentramento que levou Miriam a ser também documentarista. Sair à rua com uma equipe de filmagem tornou-se uma extensão do seu trabalho junto ao divã da psicanálise. Sair para ter “uma escuta que olha”. A rua como espaço de trabalho. Os filmes não só passaram a ampliar seu campo de intervenção, como retroalimentaram sua percepção do funcionamento da psique.

Julia Kristeva, Christian Metz, Roland Barthes, Félix Guatari, Marco Bellocchio, Bianca Dias, Dinara Guimarães… São muitos os nomes que cruzam a ponte entre psicanálise e cinema. Mas não conheço outro que tenha unido as duas margens num só território. Miriam Chnaiderman o fez e nos brinda agora com um livro que reflete luminosamente sobre esse percurso: Uma psicanálise errante – Andanças cinemáticas e reflexões psicanalíticas.

Ela é autora de 13 documentários, o mais conhecido dos quais é o longa De Gravata e Unha Vermelha, em que investigou as novas configurações familiares e da sexualidade LGBTQIAPN+. No livro, Miriam orbita em torno de cada projeto, desde remontar às suas origens e expor suas escolhas na realização até psicanalisar remotamente alguns personagens e destrinchar o que cada filme suscitou em seu pensamento de psicanalista. Assim é que, partindo do processo de documentar, a autora navega por teóricos como Lacan, Foucault, Michel de Certeau, Christian Dunker e outros tantos, chegando sempre a conclusões muito suas.

Ao fazer Dizem que Sou Louco, documentário sobre os chamados loucos de rua, aprendeu os códigos de ética e a estrutura comunitária que vigoram na cidade aberta. Os transtornos mentais foram tema também de Procura-se Janaína, documentário de busca de uma jovem negra que, abandonada quando menina duas décadas antes, havia saído da Febem e frequentado uma clínica com sintomas psicóticos. A procura durou cinco meses e abriu os olhos de Miriam para os abrigos que lidavam com crianças em situação de risco.

O cineasta e escritor “marginal” José Agrippino de Paula, diagnosticado com esquizofrenia, foi personagem de Passeios no Recanto Silvestre. Já nos seus últimos anos de vida, recolhido no município paulista de Embu, Agrippino manteve a equipe de Miriam em suspense sobre a eventualidade de voltar a filmar. Desse retrato imersivo do artista recluso, Miriam retirou essa lição: “Tivemos, nos meses de contato com José Agrippino, que trabalhar em nós mesmos qualquer furor psicanalítico. O psicanalista foi ele, não nós. Sua generosidade e acolhimento nos marcam. O enigma é nosso, a perplexidade é nossa. Não é esse o único fim possível de um processo analítico, o acolhimento do enigma?”

A reflexão sobre o filme com Agrippino levou Miriam a escrever um belo ensaio fazendo paralelos entre Passeios no Recanto Silvestre e Estamira, de Marcos Prado. Segundo Miriam, a ética específica com as imagens teria autorizado Marcos a lidar com sua personagem com maior liberdade do que um psicanalista se permitiria.

O trabalho com cadáveres em Artesãos da Morte, ou com as ossadas dos mortos durante a ditadura militar em O Oco da Fala; as pessoas que passaram por traumas brutais em Sobreviventes; o racismo e as políticas afirmativas nos vídeos Isso, Aquilo e Aquilo Outro, Você Faz a Diferença e Afirmando a Vida; as obras de arte de Nazareth Pacheco, centradas no corpo torturado, mutilado e dilacerado, em Gilete Azul… Os documentários de Miriam Chnaiderman conversam com os limites da experiência humana. Seu livro nos chega agora para mostrar o que estava por trás e para além deles. A imagem possibilita a criação de narrativas que, como ela diz, “deem conta do inenarrável”. Ou, quando afirma isso de outra maneira: “A arte busca dar forma ao que não cabe no discursivo”.

Uma psicanálise errante é ademais uma leitura agradabilíssima. Se aqui e ali Miriam envereda por considerações teóricas um pouco mais áridas para o leitor comum, a maior parte do livro é composta de uma escrita fluente, poética e emocionada.

Termino com um exemplo da beleza com que Miriam vê o (seu) cinema:

“A vida recortada em cenas, como se o mundo passasse a ser uma grande tela de filmes possíveis. Tudo isso lembra a diferença que existe entre sair para fotografar ou simplesmente sair para passear – como se a lente introduzisse um outro olhar. Ou, em Eduardo Coutinho, fundasse o olhar para o mundo.”

Uma psicanálise errante – Andanças cinemáticas e reflexões psicanalíticas
Editora Blucher, São Paulo, 2024
344 páginas

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