O personagem-câmera

O REFORMATÓRIO NICKEL (NICKEL BOYS)

Elwood e Turner na única tomada em que aparecem juntos no mesmo quadro (um reflexo)

Internatos convertidos em câmaras de horrores são um tema frequente no cinema da temporada 2024. Aparecem no irlandês Pequenas Coisas como Estas e nos estadunidenses Sugarcane: Sombras de um Colégio Interno e O Reformatório Nickel, os dois últimos indicados ao Oscar. Ao contrário dos dois primeiros, Nickel Boys toma um caminho nada convencional. Na verdade, me parece um dos filmes mais formalmente ousados da produção recente nos EUA.

O diretor RaMell Ross tem fama de experimentalista na construção de seus filmes anteriores, todos documentários. Desta vez, estreando na ficção, ele se baseou em romance de Colson Whitehead, vencedor do Prêmio Pulitzer, que narra a amizade entre dois internos num reformatório da Flórida nos anos 1960. A tristemente real Dozier School for Boys dá lugar, no livro e no filme, à fictícia Academia Nickel, para onde é recolhido o jovem Elwood Curtis (Ethan Herisse) depois de pegar uma carona malfadada.

O estranhamento das primeiras cenas logo se explica pela opção de narrar exclusivamente do ponto de vista do olhar de Elwood. Assim é que veremos quase tudo “através” dele, limitados pela direção e o recorte do seu olho-câmera. O som é igualmente modulado segundo sua percepção subjetiva. (Vem aí Presence, de Steven Soderbergh, todo narrado do ponto de vista de um fantasma).

Na Academia, submetido à corrupção e às ameaças dos dirigentes, o pacifista Elwood trava amizade com o inconformista Turner (Brandon Wilson). Estamos em 1967, em plena luta pelos direitos civis e contra a segregação racial. De certo modo, os dois amigos vão ecoar as opções de Luther King e Malcolm X.

No livro de Whitehead, as perspectivas se alternam entre Elwood e Turner. O filme faz o mesmo, adotando aqui e ali o ponto de vista de Turner, de tal forma que passamos a ver finalmente também o rosto de Elwood. Mesmo assim, RaMell Ross nega-se a praticar o modelo clássico de campo e contracampo. O filme é entrecortado, os tempos são descontínuos, vinhetas surrealistas e arquivos de época invadem o fluxo narrativo… A ponto de dificultar um bocado a percepção de muitas elipses e situações.

O surgimento randômico de Elwood em idade madura, visto através de uma câmera afixada por trás de sua nuca, me pareceu um tanto esotérico demais. Ele estaria investigando a descoberta de túmulos e corpos de meninos nos terrenos da academia. Uma tela de computador indica o ano de 2018. Consta que, entre 1900 e 1973, quase 100 crianças morreram na Dozier School for Boys. Eram quase todas negras.

O Reformatório Nickel demonstra uma grande coragem formal – e é espantoso que tenha chegado à final do Oscar de melhor filme. O trabalho do elenco é igualmente admirável. Ainda assim, o estilo chama tanta atenção que o assunto acaba ficando em segundo plano. Mesmo a subjetividade de Elwood, tão enfatizada pelo equipamento de filmagem, fica menos explorada do que seria desejável. De qualquer forma, é um filme audaz e desafiador.

>> O Reformatório Nickel está na plataforma Prime Video.

4 comentários sobre “O personagem-câmera

  1. Mattos, você sintetizou perfeitamente a percepção que tive ao assistir a esse filme. Agradeço muitíssimo por suas análises.

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