Olhares críticos sobre a classe média

Mais um texto que fiz para recente lançamento em DVD da Programadora Brasil reunindo o longa Opinião Pública, de Arnaldo Jabor, e o curta A Entrevista, de Helena Solberg.

Dois filmes sobre a classe média carioca dois anos depois do golpe de 1964. Em seu primeiro longa-metragem, Opinião Pública, Jabor aplica princípios do cinema-verdade para examinar os sonhos e projetos (ou sua falta) de uma vasta fauna humana para quem a câmera de cinema no meio da rua ainda era uma grande novidade. O filme, um clássico do documentário moderno brasileiro, acaba flagrando também o absurdo que existe por trás do cotidiano, bem à maneira do que Jabor faria depois na ficção. O complemento do DVD é o primeiro curta de Helena Solberg, uma reflexão de mulheres sobre os valores burgueses em voga no período. A última sequência, alusiva ao golpe militar, explicita a análise política que esses dois filmes faziam sobre o imobilismo e a alienação da classe média.

Opinião Pública

Diferentemente da maioria dos filmes produzidos sobre o Rio de Janeiro na década de 1960, Opinião Pública não está interessado nas paisagens nem nos estereótipos do carioca. Ao contrário, é com prazer quase voyeurístico que Arnaldo Jabor se infiltra em apartamentos de Copacabana, numa imunda república de estudantes da Lapa, num terreiro de candomblé, numa boate superlotada, no circo de milagres de uma curandeira de subúrbio. A câmera de Dib Lutfi em Opinião Pública cola à pele das pessoas para tentar alcançar uma espécie de terceira dimensão – aquela tridimensionalidade que se constrói no ato da fala, da dança, do delírio coletivo.

Mais que uma imagem da cidade, este marco do documentário brasileiro sai à procura da expressão de uma classe. É a classe média, vista como a grande responsável pelas contradições expostas pelo Cinema Novo. O imobilismo político em troca da mobilidade social, o culto às celebridades, o vazio de projetos, tudo o que Jabor detectou na classe média carioca certamente já estava num diagnóstico prévio do realizador. Embora o Cinema Novo privilegiasse a dicotomia mais dramática povo-burguesia, esse estamento social intermediário constituía um alvo privilegiado na mentalidade dos cineastas, quase todos saídos da própria classe média.

Obviamente, está ali uma estratégia de inclusão/exclusão que fabrica a ironia costumeira das reflexões de Jabor, até nos seus textos recentes para a imprensa. A voz imponente do narrador abre o filme falando em “nós”. No entanto, essa demonstração de consciência dos problemas cria uma nuance na inclusão de quem fez o filme. No fundo, esse “nós” quer significar “eles”.

O primeiro longa-metragem de Jabor atende à dupla pauta do Cinema Novo: revelar em profundidade o país e afinar o cinema brasileiro com os procedimentos do cinema moderno. Opinião Pública é um dos melhores reflexos, no Brasil, da revolução que se instalou no reino dos documentários no alvorecer dos anos 1960. O advento das câmeras leves e do som sincronizado tirou os cineastas do estúdio e os levou para o olho da realidade. A enorme influência de Crônica de um Verão (1960), de Jean Rouch e Edgar Morin, responde por essa nova concepção de cinema-verdade, em que os fatos se precipitam pela presença da câmera, e não a despeito dela.

É a presença da câmera que aciona nas pessoas o desejo de falar e as interrelações que se estabelecem brevemente dentro do quadro. É a câmera que estimula as micagens do menino, capazes de desconstruir a entrevista do avô numa cena hoje antológica. É à câmera que a “santa” Isaltina e seu companheiro se dirigem para exortar os espectadores. A câmera é esse olho expositivo, implacável, diante do qual se produz a chamada opinião pública.

O curta A Entrevista bem poderia ser uma costela retirada de Opinião Pública. Ali está o mesmo desejo de captar o pensamento de um grupo social – no caso, mulheres jovens da classe média alta carioca. Mas Helena Solberg não segue o figurino estrito do cinema-verdade. A montagem de Rogério Sganzerla divorcia imagem e som, editando depoimentos em off sobre as imagens de uma única personagem, uma moça que vai à praia e se prepara para a cerimônia de casamento. Os valores femininos burgueses dançam diante de nossos olhos e ouvidos, concluindo com o veredicto da alienação política. Vivia-se a sociologia do questionamento, ou seria o questionamento da sociologia?

2 comentários sobre “Olhares críticos sobre a classe média

  1. Não encontro esses dvds da “programadora Brasil” em lojas ou mesmo sites de venda de filmes/dvds. Estou ouvindo falar (lendo) pela primeira vez aqui no seu blog, no comentário sobre filme do Khoury e agora neste do Jabor.

    • Clique no link do site da Programadora e você vai saber como ela funciona. Não é uma distribuidora comercial. Trabalha com cineclubes, pontos de cultura, entidades, escolas etc.

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