Geni e seu cachorrinho

A Mostra Centenário de Nelson Rodrigues vai chegando ao final no Canal Brasil. Amanhã e depois serão exibidas duas das melhores transposições de Nelson para as telas: Toda Nudez Será Castigada e A Falecida. À meia-noite e dez de segunda para terça-feira será a vez do filmaço de Arnaldo Jabor. Leia a seguir o texto em que se baseou a apresentação da sessão.  

A grande maioria dos críticos consideram Toda Nudez Será Castigada a melhor adaptação de Nelson Rodrigues para o cinema. Talvez o grande diferencial não esteja só na qualidade do filme de Arnaldo Jabor. O fato é que vários diretores trataram Nelson como uma curiosidade exótica ou como um chamariz de sucesso. Mas Jabor viu no dramaturgo uma alma gêmea. A identificação foi tanta que logo depois viria a recriação nas telas do romance O Casamento. Mais que isso, alguma coisa de Nelson Rodrigues se estenderia pelo resto da obra do cineasta, mesmo quando não era um Nelson Rodrigues. A decadência da família, a impossibilidade do casal, as contradições da classe média estariam sempre presentes nos futuros filmes de Jabor.

A peça, montada pela primeira vez em 1965, foi tão maldita quanto quase todas do autor. Vários atores e atrizes recusaram os papéis, a começar por Fernanda Montenegro, que encomendou a Nelson uma comédia e recebeu uma tragédia. O filme, rodado em 1972, foi recebido como uma ressurreição cinematográfica de Nelson Rodrigues. Passou na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes e Jabor ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim. Embora não houvesse premiação para atriz naquele ano, Darlene Glória foi amplamente festejada como responsável pela melhor interpretação feminina do festival alemão. No Brasil, também foram muitos os prêmios, e as salas se encheram com um público de quase 2 milhões de pessoas.

Todos queriam ver Darlene Glória e Paulo Porto naquele tango libidinoso ao som de Astor Piazzolla. Paulo é o viúvo Herculano, prisioneiro do passado e das juras de fidelidade à esposa falecida. Darlene é Geni, a prostituta amorosa que ele conhece num momento de fraqueza e, desde o primeiro encontro, vira uma espécie de cachorrinho dela. Herculano cede à tentação de um novo amor, mas não contava com a intervenção de seu filho, decidido a defender o lugar da mãe como se ela estivesse viva.

Enquanto outras histórias de Nelson Rodrigues tratam de criaturas ambíguas e sinuosas, Toda Nudez Será Castigada lida com extremos bem marcados. Os personagens mudam radicalmente de posição quando movidos pela paixão súbita ou por um repentino desejo de vingança. No filme, todos os elementos vão sublinhar esses extremos. Herculano é associado com o passado, o luto, os códigos de moral, a castidade, os interiores fechados e austeros. As casas de sua família são câmaras mortuárias, recintos góticos entulhados de móveis, objetos de arte, quadros, cortinas e tapeçarias.

Geni, por sua vez, é identificada com a luz do dia, os ambientes coloridos, as janelas abertas, a sensualidade exposta ao público. São dela os gestos largos, a voz alta e as decisões drásticas, para o bem ou para o mal. Como Geni, Darlene Glória nos dá uma das atuações mais exuberantes da história do cinema brasileiro, rivalizando com a contenção de Fernanda Montenegro em A Falecida, também baseado em Nelson Rodrigues (veja meu post da próxima terça-feira).

Vez por outra, Geni aparece cantando boleros numa boate. Trata-se de um cumprimento de Jabor aos melodramas latino-americanos, com suas santas e prostitutas vivendo paixões em que quase não dá pra acreditar. Mas Nelson Rodrigues guardou na manga um xeque-mate para derrubar a lógica do melodrama: é o personagem do ladrão boliviano, que terá uma participação desconcertante e surpreendente na trama.

Jabor mirava também a classe média brasileira, que ele já havia interrogado criticamente no documentário Opinião Pública, feito cinco anos antes. A família de virtudes hipócritas desaba sob a potência do desejo sexual ou se amolda às conveniências do momento. Ela seria um microcosmo da burguesia carioca em tempos de crise do chamado milagre econômico. De alguma forma, era o compromisso social do Cinema Novo se adaptando a um novo momento de busca de mercado para os filmes brasileiros, ali na virada dos anos 1960 para os 70.

Nelson Rodrigues aprovou o filme com entusiasmo. Talvez com uma ponta de auto-elogio, ele achava mesmo que era uma das poucas coisas que se salvavam no cinema brasileiro da época. Dizia que “ao contrário do que pensa o Jabor, é um filme que tem todos os meus defeitos”. E comparava Darlene a Greta Garbo, destacando como ela estava divinamente bem quando dizia, lá de dentro do seu quarto no bordel: “Estou ocupada!”

Só a censura do governo militar não acompanhou os elogios generalizados. Já com algumas semanas em cartaz, o filme foi retirado dos cinemas sob acusação de “ofensa ao decoro público”. Só depois do sucesso em Berlim é que viria a liberação, assim mesmo com vários cortes que até comprometiam o entendimento da trama.

Mas esses são tempos passados e enterrados. Agora, a Mostra Nelson Rodrigues vai exibir a versão integral e escandalosamente livre de Toda Nudez Será Castigada.

3 comentários sobre “Geni e seu cachorrinho

  1. Toda Nudez do Jabor é para mim a melhor adaptação da obra do Nelson.Ele era um gentleman,o conheci na Embrafilme,pela manhã no DPP Departamento de Publicidade e Propaganda.Recém chegado de Minas levei um susto quando ele disse em tom solene “bom dia meu querido”.Me belisquei para saber se era verdade.Vistoriava todas as peças,os press books os cartazes,era fascinante obeserva-lo.Trabalhei no lançamento de vários filmes de sua obra.São as boas recordações de momentos que o cinema me proporcionou,e ainda proporciona.Oxalá!

  2. E ainda temos Pereio em grande estilo. Que pena que Jabor deixou a vaidade transformar um cineasta talentoso em um autor/encenador de panfletos reacionários.

    • Mas o próprio Nelson Rodrigues já havia previsto isso, babando de satisfação no guardanapo: “Arnaldo Jabor crescerá de maneira fantástica quando brigar com todas as suas atuais amizades. O Jabor só não é muito maior porque não é reacionário, mas, um dia, ele o será, e nós assistiremos à explosão de seu gênio. Nunca vi ninguém com mais vocação para aristocrata do que o Jabor.”

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