A ronda, de Schnitzler a Ophüls e a Meirelles

360 foi recebido a pontapés pela maior parte da crítica americana (19 pontos na média do Rotten Tomatoes e 43 na do Metacritic) e com abraços protocolares pela brasileira (61 pontos no Kritz).  É de fato um filme problemático, que investe numa fórmula moderna mas com substância dramatúrgica frágil. O roteiro tem inverossimilhanças e usa alguns recursos banais para fazer andar sua trama multiplot. As falhas de estrutura, porém, são dissimuladas por uma direção afiadíssima de Fernando Meirelles e uma montagem fenomenal de Daniel Rezende. Acaba sendo um filme sedutor, que vi e revi com prazer.

Mas quero me deter aqui sobre o que Meirelles e o roteirista Peter Morgan propõem como atualização para o século 21 daquele carrossel de amores (mais sexo que amor, na verdade) que é a peça La Ronde, de Arthur Schnitzler, passada na Viena de 1900.

O clássico filme La Ronde, de Max Ophüls, pode ser visto no Youtube com legendas acionadas em espanhol. Ali verificamos que os personagens seguem uma montanha russa de classes sociais, veiculando um comentário sobre a hipocrisia de uma burguesia ascendente que usava o poder como moeda na obtenção de favores sexuais. A questão sócio-econômica é diluída em 360, em troca de uma multiplicidade de tópicos que inclui o fundamentalismo religioso, a reabilitação de criminosos, a diáspora familiar, a balança da prostituição na Europa unificada e outros quejandos contemporâneos. Ou seja, o grande “X” histórico que se abria na virada do século 19 deixa de prevalecer numa era em que diversos micro-X assumiram o seu lugar.

La Ronde, rodado em 1950, tecia seu “círculo perfeito” com base na narrativa clássica em continuidade. Fiel ao texto de Schnitzler, fazia cada par se encontrar e se desfazer sucessivamente, com um personagem passando de um par para outro – o que já levou La Ronde a ser interpretada como uma metáfora da transmissão de doenças sexuais. O tempo ainda era escravo da cronologia e das conexões físicas possibilitadas pela unidade espacial (Viena, 1900). São famosos os planos longos de Ophüls, que seguem o deslocamento dos atores e várias mudanças de cenário sem cortes, como a enfatizar a ideia de sucessão e ancoramento num mesmo espaço. Já a versão de Meirelles e Morgan, além de quebrar a corrente dos pares sucessivos e explodir a concentração espacial em diversas cidades e países, despedaça também a linearidade em fragmentos mais ou menos concomitantes. No mundo atual, a rapidez das comunicações, a facilidade das viagens e a ubiquidade virtual fazem com que tudo pareça acontecer ao mesmo tempo.

360 leva essa noção de simultaneidade ao paroxismo através da divisão constante do quadro, a profusão de telas dentro da tela (celulares, computadores, tevês, espelhos) e uma montagem que “aproxima” tudo através de passagens “mágicas” entre ambientes/cidades. Os personagens parecem ver-se uns aos outros através desse excesso de “janelas”, exatamente como acontece hoje em dia com nossas relações nas redes sociais. 360 é La Ronde para a era digital.

Outro aspecto a notar é que a grande novidade do filme de Max Ophüls em relação ao modelo narrativo da peça de Schnitzler era a inserção do próprio cinema na trama. La Ronde começava com um personagem onisciente que nos prometia mostrar o “outro lado da realidade” através de sua visão “en ronde”, ou seja, de 360 graus. Era o cinema se “achando”. O filme atual não tem qualquer aparato do gênero, e não é só porque a metalinguagem seja coisa do passado. A pretensão de onisciência do artista há muito cedeu lugar ao simples desejo de contar histórias. 360 conta as suas sem nenhuma grande intenção, nenhum grande significado. Ele apenas desliza pela superfície desses esboços dramáticos. 360 é La Ronde para a idade das aparências.

No lugar das valsas de Strauss, que sugeriam sonoramente os elos da cadeia, temos agora o episódico das canções (bela seleção feita por Ciça Meirelles, mulher do diretor). A babel idiomática e o caráter fragmentado dessa ronda se manifestam, portanto, também na trilha musical.

Por fim, vale registrar que, em sua época, o filme de Ophüls foi criticado por razões semelhantes às que agora atingem o carrossel espatifado de Meirelles: superficialidade, exiguidade dos episódios, uma autoconsciência muito marcada. Tudo isso é verdade, mas tanto um como outro merecem ser vistos pela excelência da realização e pelo que, nas entrelinhas, falam do cinema e de seu tempo.

7 comentários sobre “A ronda, de Schnitzler a Ophüls e a Meirelles

  1. Comparações e analogias super-pertinentes. Uma curiosidade: La Ronde, de Max Ophuls, está comemorando 62 anos. Seguindo a linha das analogias: como será o cinema em 2074?
    abs
    Susana

  2. “Por fim, vale registrar que, em sua época, o filme de Ophüls foi criticado por razões semelhantes às que agora atingem o carrossel espatifado de Meirelles…”- C.A.M.

    O filme de Ophüls se tornou um clássico, apesar de tudo; o filme de Meirelles, mesmo sem futurologia barata, ora!, um clássico NÃO se tornará. Serve colocar assim, caro Carlos Alberto Mattos — ou TUDO que o Walter Salles e o Meirelles fazem TEM que ser “defendido” de todo jeito, aqui em Pindorama, apenas porque são, atualmente, os nossos únicos cineastas com algum pé na “internacionalidade” (digamos assim)?…

    Bem, em termos de internacionalidades, eu ainda prefiro um Glauber Rocha até a esmurrar (absurdamente, é claro) um Louis Malle, do que a nossa dupla midiática de diretores que não lambem o chinelo chulerento — porque, segundo o falecido Schubert Magalhães (que morou no mesmo apartamento com GR), este tinha um “chulé da peste”! — do aclamado realizador de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, obra internacionalíssima de raiz brasileira e produzida na Idade Inocente (?) de um Cinema então sem olhos grandes no Oscar (que nunca vem), ó Waltinho e ó xará Fernandinho etc etc…

    PS: É sempre bom lembrar que, quando o Itamaraty rseolveu meter o seu dedão para a indicação de “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” ao… Oscar!, Glauber botou a boca no mundo dos jornais e saiu gritando que jamais admitiria ver seu filme levado para o tapete vermelho de Los Angeles que há anos esperam os sapatos anualmente engraxado do nosso engraçado par de cineastas.

    • ERRATA:
      “PS: É sempre bom lembrar que, quando o Itamaraty rseolveu meter o seu dedão para a indicação de “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” ao… Oscar!, Glauber botou a boca no mundo dos jornais e saiu gritando que jamais admitiria ver seu filme levado para o tapete vermelho de Los Angeles que há anos esperA os sapatos anualmente engraxadoS do nosso engraçado par de cineastas.

    • Caro Fernando Monteiro, eu poderia dizer simplesmente que minha análise dos filmes do Meirelles e do Salles não é movida por qualquer partipris como suas agressivas opiniões contra os dois diretores. Limito-me a observar os filmes em suas qualidades e limitações. Não coloco em questão nenhuma idiossincrasia pessoal sobre eles, seja contra ou a favor. Mas quero também discordar profundamente de várias coisas que você escreveu, a começar pela afirmação de que os dois são “os nossos únicos cineastas com algum pé na ‘internacionalidade'”. Heitor Dhalia, Vicente Amorim e José Padilha também já filmaram nos EUA, e nem por isso justificam qualquer tratamento diferenciado ao se tratar de seus filmes. Esgrimir suas preferências pessoais e desqualificar os argumentos alheios com tanta deselegância e ressentimento é que não me parece a forma mais adequada de levar uma discussão adiante.

      • Eu acho (tenho que achar!) que você acha que eu fui “deselegante” só porque falei de chulé (do Glauber). Imagine se eu tivesse ousado dizer que Meirelles, Salles, Dhalia, Amorim e Padilha têm chulé…
        “Deselegância” nenhuma, caro Carlos Alberto Mattos. A não ser a da palavra “chulé” aparecendo no seu blog, mas ninguém tem culpa de ter, né?

  3. Concordo em gênero, número e grau(s) (360, é claro). Vale muito ver o filme que ainjda vou rever.

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