À 0h15 de segunda para terça-feira, o Canal Brasil vai apresentar O Beijo, adaptação dos anos 1960 para a peça O Beijo no Asfalto. A seguir, meu texto de introdução para a sessão da Mostra Centenário Nelson Rodrigues.
Por incrível que pareça, Nelson Rodrigues se baseou num acontecimento real para escrever a peça O Beijo no Asfalto. Um jornalista foi atropelado no Centro do Rio e pediu um beijo à primeira pessoa que o socorreu. Era uma moça, mas Nelson imaginou como seria se fosse outro homem. Foi assim que ele finalmente atendeu ao pedido de Fernanda Montenegro para que escrevesse uma peça para o Teatro dos Sete, ali pelo início da década de 1960.
Na montagem de estreia, Fernanda fez o papel de Selminha, a jovem mulher do arquiteto Arandir, que era crucificado pela opinião pública porque atendeu ao pedido de um homem moribundo.
O Beijo no Asfalto teve duas adaptações para o cinema: a primeira, que será exibida nesta segunda-feira, é de 1965. A segunda foi dirigida por Bruno Barreto em 1981 e passa na terça.
O diretor de O Beijo foi Flávio Tambellini, cineasta e gestor de grande importância para o cinema brasileiro nos anos 50 e 60 do século passado. Ele viu na peça o material adequado a uma fábula expressionista sobre o veneno da maledicência. Afinal, era a primeira peça de Nelson que não se limitava a um grupo fechado e claustrofóbico de criaturas. O personagem principal de O Beijo no Asfalto é a multidão, o disse-me-disse, o linchamento moral de um inocente a partir da obsessão de um jornalista.
Arandir beijou um homem! Um homem que talvez já conhecesse e com quem tivesse um caso. Quem sabe tenha até empurrado a vítima para a morte. A viúva não compareceu ao enterro… É fácil criar uma monstruosidade para consumo da massa e assim alimentar o sadismo social. A suspeita doentia se espalha como um rastilho de pólvora. As opiniões vêm de todo lado. Os cochichos não têm dono: são ouvidos no filme sem que se saiba de onde vêm. Toda a cidade acusa Arandir, até nos letreiros luminosos.
A homossexualidade como estigma é um tema frequente na obra de Nelson Rodrigues. Isso reflete não só o conservadorismo de sua visão, mas também a homofobia e o moralismo sufocante que reinavam na sociedade da época. Flávio Tambellini sublinha essa gravidade com um estilo bem marcado. As fisionomias são carregadas ou turvadas pela culpa, a dúvida, a obsessão. A luz é bastante recortada e os personagens projetam suas sombras nas paredes. A trilha do grande maestro Moacir Santos é enfática. Tudo remete ao cinema expressionista, que Alfred Hitchcock, William Wyler e os policiais noir americanos adaptaram à dramaturgia de Hollywood. O crítico Rogério Sganzerla chamava esse estilo de “expressionismo caipiria”.
Curiosamente, o filme não mostra nem o atropelamento, nem o beijo. Nem mesmo reproduz os palavrões que pela primeira vez deram as caras numa peça de Nelson Rodrigues. Mas a alteração mais importante, em relação ao palco, foi a criação de um motivo psicanalítico para a conduta maníaca do repórter vivido por Jorge Dória. Na peça, ele era apenas um cara inescrupuloso. No filme, é um atormentado.
Consta que Nelson não gostou muito do resultado na tela. Com sua verve habitual, ele disse que Flávio Tambellini era “o Kafka do circo democrático”.
Gostando ou não, Nelson deve ter admitido que o filme realçou um aspecto importante do texto: O Beijo no Asfalto é também uma história de intolerância contra a compaixão. Por isso se presta a uma leitura religiosa. O paralelo entre Arandir e Cristo é enfatizado pela pintura que a câmera esquadrinha em vários momentos do filme. São figuras grotescas que parecem comentar o sofrimento de Jesus. E o beijo de Judas é outra referência importante para os temas da denúncia e do sacrifício.
O filme começa com um grande close dos olhos do repórter. É uma dica para a importância do olhar no filme. O que se vê nem sempre é aquilo em que se deve acreditar. Da mesma forma, o que as pessoas acreditam nem sempre é aquilo que veem, mas somente o que ouvem e deduzem a partir de seus próprios preconceitos. Essa é a grande mensagem moral que Nelson Rodrigues transmite com esse texto.
E por falar em olhar, uma cena em particular magnetiza os olhos da plateia. Em meio a um elenco que inclui Reginaldo Faria, Norma Blum, Glauce Rocha e o super-rodriguiano Fregolente, destaca-se a primeira atuação de Betty Faria no cinema. Um símbolo sexual instantâneo. No papel de uma candidata ao estrelato, ela faz um sensacional número de dança, semelhante aos que apresentava na famosa boate Skindô. Mas é uma dança que começa andrógina. Aos poucos, Betty vai se transformando de homem em mulher, em mais um eco da questão da troca de gêneros, que é de importância central no filme.
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