O filme em cartaz hoje (0h15 de terça para quarta) na Mostra Centenário de Nelson Rodrigues, do Canal Brasil, é Engraçadinha (1981), de Haroldo Marinho Barbosa. Abaixo, meu texto de introdução da sessão.
A mostra exibiu ontem Engraçadinha Depois dos Trinta, de 1966, adaptado do folhetim Asfalto Selvagem. Como informava o título, aquele filme contava a segunda parte da história de Engraçadinha, quando ela já era mãe de família. Na versão que veremos hoje, filmada bem depois, em 1981, vamos conhecer a primeira parte dessa saga de uma família da pesada.
Nelson a denominou Engraçadinha, seus Amores e seus Pecados dos Doze aos Dezoito. O filme de Haroldo Marinho Barbosa intitula-se simplesmente Engraçadinha. E quem faz o papel-título é Lucélia Santos, consagrada naquele mesmo ano como a ninfeta rodrigueana por excelência depois de protagonizar Bonitinha mas Ordinária.
Lucélia encarna uma pequena serpente manipuladora, um Mefistófeles de camisola circulando entre os parentes. Ela é noiva do pacato Zózimo, personagem de Daniel Dantas, mas se arde de paixão pelo primo Sílvio, vivido por Luiz Fernando Guimarães. A fim de conquistá-lo, ela não mede artimanhas para destruir o noivado de Silvio com Letícia, também sua prima, interpretada por Nina de Pádua.
Mas os ardis de Nelson Rodrigues são tamanhos que até a inteligência perversa de Engraçadinha vai ser suplantada pelas descobertas que a família lhe reserva. Questões como adultério, incesto, lesbianismo, aborto, perda e restituição da virgindade, suicídio e mutilação genital são tratadas como se fizessem parte do drama cotidiano de uma família burguesa qualquer– somente, digamos, com alguns gritos a mais.
Em fins dos anos 1950, isso era motivo suficiente para muita gente boa não levar Nelson a sério como literato. Como diz Ruy Castro na biografia O Anjo Pornográfico, “Nelson, enxotado da literatura, tinha de se contentar com o povo”.
E o povo continuava a prestigiá-lo na década de 80. Engraçadinha, o filme, foi visto por quase 600 mil pessoas em 1981. Naquele ano, três filmes baseados em Nelson Rodrigues atraíram 3 milhões de espectadores, incluindo aí Bonitinha mas Ordinária e Álbum de Família, ambos dirigidos por Braz Chediak.
Três anos antes, o diretor de Engraçadinha, Haroldo Marinho Barbosa, tinha realizado um curta documental chamado A Nelson Rodrigues. Nele, o escritor aparecia revisitando locais e ambientes que marcaram seu universo criativo. Haroldo é um grande conhecedor da obra de Nelson. Embora estivesse adaptando um romance naturalista, ele procurou uma dicção mais teatral para melhor se aproximar da essência da obra. Os espaços são fechados, os ambientes são escuros, as falas ecoam através do filme como os trovões que ouvimos anunciando uma chuva que só vai cair na cena final.
O filme é narrado em flashbacks sucessivos a partir do discurso fúnebre no enterro do respeitável Dr. Arnaldo e da confissão de Engraçadinha a um padre ávido por detalhes sórdidos. O pecado original de toda a história é uma relação sexual proibida que ocorre justamente numa biblioteca. Isto já situa o conflito entre respeitabilidade e luxúria, entre o que dizem os livros, ou seja, a cultura formal, e as precipitações da vida e da paixão. Aliás, os cômodos da casa, as portas e os móveis têm importância fundamental no jogo de atração e repulsa, interdições e equívocos entre os personagens.
A figura do pai, especialmente do pai de filha mulher, é recorrência obsessiva na obra de Nelson Rodrigues. Dois deles se defrontam numa das melhores cenas de Engraçadinha, que reúne dois dos maiores atores brasileiros de todos os tempos. De um lado, Nelson Dantas (na foto acima com Lucélia Santos), no papel do médico restaurador de virgens, explica como um trauma familiar o conduziu a essa especialidade. De outro, José Lewgoy, o pai de Engraçadinha, tenta certificar-se de que a filha ainda poderá fazer jus a um casamento de véu e grinalda, e se possível com muitos coroinhas.
Wilson Grey faz outra figura cara a Nelson Rodrigues, que é o intermediário. O fofoqueiro Odorico Quintela será o elemento de ligação entre a primeira e a segunda parte da história de Engraçadinha. Na segunda, será ele a tentar conquistá-la.
O filme foi produzido por Paulo Thiago e traz cenas da chanchada De Vento em Popa, um clássico da Atlântida. Na trilha sonora destaca-se a canção-título de Sergio Sarraceni e Tite de Lemos, na interpretação de Zizi Possi.
Tenho boa lembrança deste filme do Haroldo (assim como de “Ovelha negra” e de “Baixo Gávea” – ele devia filmar mais). Foi o melhor dos 3 filmes baseados em Nelson lançados naquele mesmo ano (e muito melhor do que os outros dois). O texto do Carlinhos dá vontade de rever o filme.
Eu acho os três filmes de 1981 muito fracos, inclusive este do HMB. Não digo isso no texto acima porque não se trata de uma crítica avaliativa, mas apenas uma apresentação.