Carlos, que foi gauche na vida

MARIGHELLA

“Você é maoista, trostskista ou leninista?”, pergunta o jornalista francês. “Sou brasileiro”, responde Carlos Marighella numa cena do filme de Wagner Moura.

Marighella pinta o retrato de um homem profundamente brasileiro, que reivindicava o epíteto de patriotas para si e seus companheiros de luta, e não para os meganhas da ditadura que se proclamavam como tal. É o mesmo que acontece hoje, quando milicianos e ogres da extrema-direita colocam o nome e as cores do país no seu círculo de ódio.

Pedindo perdão pelo paralelo talvez impróprio, Marighella me parece o Tropa de Elite da esquerda. Refiro-me não só à qualidade cinematográfica, mas à perícia com que mobiliza sua narrativa em benefício de valores diametralmente opostos aos do filme de José Padilha. O político, poeta e guerrilheiro Marighella aparece tão complexo quanto o Capitão Nascimento, embora com sinais trocados. Ele é o pai amoroso e o líder carismático, mas involuntariamente expõe família e companheiros ao perigo que sua caçada pela polícia deflagra. É o guerrilheiro ético e poético, dotado de alvos certos e não aleatórios, mas que, na hora do “olho por olho”, assume com ênfase, como num desabafo: “É terrorismo, sim!”.

Baseando-se no livro Marighella – o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, de Mário Magalhães, Wagner Moura ateve-se aos cinco últimos anos da vida do baiano Carlos (1964 a 1969), quando ele manda o filho para a Bahia, funda a Aliança Libertadora Nacional e se insurge contra a oposição sem armas do Partido Comunista Brasileiro. Em cenas de ação eletrizantes, o vemos participar de uma apropriação de armas do Exército num trem em movimento e de um assalto a banco no centro de São Paulo. O famoso episódio de seu baleamento e prisão no interior de um cinema do Rio é reconstituído de maneira primorosa, assim como várias refregas entre guerrilheiros e policiais nas ruas da cidade.

Apesar do título personalizado, Marighella abre seu compasso para abranger um entorno não menos importante. No âmbito da ALN, as figuras mais próximas do líder “Preto” (Seu Jorge) são personagens igualmente sólidos, como o compenetrado “Branco” (Luiz Carlos Vasconcelos), o turbulento “Humberto” (Humberto Carrão), o tenso “Jorge” (Jorge Paz) e a intrépida jovem “Bella” (Bella Camero). Em paralelo, estão o Frei “Henrique” (Henrique Vieira, em papel inspirado no Frei Fernando de Brito, que foi usado como isca para a execução de Marighella em 1969), Lúcio (Bruno Gagliasso), o sádico delegado do DOPS que corresponde a Sérgio Fleury, e um agente americano (Charles Paraventi) que faz a ligação entre a ditadura e a CIA.

Uma das muitas qualidades do filme é seu equilíbrio entre ação e intimismo. O roteiro privilegia as relações entre os ativistas, com momentos de descontração e toques sugestivos do que era viver em perigo nos anos 1960. A caracterização de época não podia ser mais adequada no que tange à produção logística e a detalhes de figurinos e aparências pessoais. Quando enfoca a dinâmica física, Wagner imprime o máximo de realismo, sem se intimidar com os muitos tiroteios e cenas de espancamento e tortura. Aquele era um Brasil feio e duro, que se mostrava principalmente nas células e nos porões.

O trabalho de Fátima Toledo na preparação de elenco mais uma vez se mostra essencial para uma representação cheia de vitalidade e verdade cênica. Os atores estão impecáveis dentro de uma moldura técnica igualmente esmerada e desprovida de estilizações desnecessárias. Muito já se discutiu sobre a escalação de Seu Jorge, um negro retinto, para fazer Marighella, que era um negro claro. A escolha se justifica não somente pela intenção de sublinhar o traço afro-brasileiro do personagem, mas também pela autoridade que o ator pode conferir ao papel.

Além do recorte biográfico e de um insight na intimidade da luta armada, Marighella pretende influenciar na disputa de narrativas que hoje se renova quanto ao lugar da ditadura pós-1964 e dos que lhe fizeram resistência. Nesse aspecto, saltam aos olhos as cenas que Wagner Moura escolheu para se sucederem à da eliminação de Marighella e encerrarem o filme. São mensagens de vitória contra a morte e contra o medo. São indícios de que a luta haveria de continuar. Marighella é um filme que acredita.

Nota 1: Recomendo também a leitura deste artigo muito informativo de Maria do Rosário Caetano e a magnífica entrevista de Wagner Moura ao Roda Viva.

Nota 2: Se você vir o filme e gostar, deixe sua nota na página do IMDb. Os bolsonaristas fizeram campanha para derrubar a cotação do filme.

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3 comentários sobre “Carlos, que foi gauche na vida

  1. Pingback: Meus filmes favoritos em 2021 | carmattos

  2. Carlos, você aponta virtudes importantes no filme, sem dúvida. Mas as frases que escolheu estão entre as que menos gosto no filme pelo qual compartilho a sua admiração. A primeira frase por ser uma “boutade” populista e pouco esclarecedora sobre Marighella. Ele declarava aos quatro ventos que era comunista e saiu do Partidão por ser crítico ao “erro” cometido em 64, ao se satisfazer com uma fatia do poder e, ao mesmo tempo, recomendar que não houvesse reação ao golpe para, assim como Jango, “evitar derramamento de sangue”. Eu tendo a achar que o Partidão e Jango estavam certos quanto à uma reação armada, mas isso é bastante polêmico na esquerda. Já a segunda frase, “É terrorismo, sim” pior não poderia ser, pois ela corrobora todas as mentiras ditas pela ditadura e o establishment sobre a guerrilha brasileira de que teria matado muito inocentes. As guerrilhas brasileira e de vários países latino-americanos jamais tiveram alvos que não fossem militares e paramilitares. Houve acidentes? Sim houve, mas para contar nos dedos de uma mão. Terrorismo foi o que praticaram os movimentos europeus da década de 70 que explodiam estações de trem e aeroportos, matando centenas de pessoas que nada tinham a ver com a luta. Enfim, acho que é um filme importante nesse momento porque traz uma certa radicalidade à política e à esquerda, discutindo se a saída é sempre pela conciliação. Não que eu seja pela luta armada, que fique claro. É uma história que já ocorreu e deu onde deu em um país com as dimensões e a complexidade do nosso. Um abraço

    • Salve, Roberto. Defendo as duas frases. A primeira por seu efeito dramatúrgico. Não sei se jamais foi dita por Marighella, mas seria uma resposta adequada para a pergunta do jornalista, que não era exatamente se ele era comunista, mas que tipo de comunista seria. A pergunta tem sarcasmo e a resposta vinha na contramão do sarcasmo. Quanto à segunda, obviamente é uma provocação do filme. De tanto ser acusado de terrorista, Marighella teria ali respondido com um misto de raiva e ironia. Isso me parece bastante claro, uma vez que os guerrilheiros, muito justamente, sempre refutaram aquele adjetivo.

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