Post Tenebras Lux

Festival do Rio

Um bode cor de rosa

Perto do final de Post Tenebras Lux um personagem faz uma coisa realmente radical com sua própria cabeça. É mais ou menos o que o espectador sente vontade de fazer diante de um filme que desafia qualquer análise racional. Em boa parte de suas duas horas de projeção, o novo rebento de Carlos Reygadas  parece um filme doméstico familiar. Os dois (adoráveis) filhos do diretor brincam com animais e com os atores que interpretam seus pais numa casa no interior do México, o casal discute sua relação sexual, os parentes se reúnem em festa de fim de ano. O resto do filme parece uma sucessão disparatada de cenas irrealistas, que só podem ser interpretadas à luz do refrão de uma canção de Neil Young desafinada pela mulher ao piano: “It’s only a dream”.

Sonhos nada amparados por interpretações psicanalíticas, quero crer. Coisas como a inocência infantil diante das bestas da natureza, o desejo de um marido realizado através da doação da mulher a outros homens num quarto de sauna chamado Duchamp, as visões oníricas de uma versão caprina da Pantera Cor de Rosa, alusões a sexo com animais, árvores derrubadas e garotos se batendo no rugby articulam-se somente através de uma concepção personalíssima do diretor. O filme é supostamente autobiográfico (melhor seria dizer “autobionírico”) e reúne referências a fatos e fantasias de Reygadas, dispostas sem maior preocupação de narratividade. Basta ver que a idade dos filhos varia livremente, segundo uma cronologia espatifada.

Um dos meios que o público tem para atravessar esse pântano expressionista é o estilo particular de Reygadas. Suas imagens são sempre intensas, o som é inquietante e as atuações ficam num espaço morto entre o naturalismo e o sonambulismo. Nas cenas externas desse filme ele experimenta um efeito de vidro bisotado nas bordas e uma tela quadrada que, aliás, está virando fetiche entre os autores mais radicais (Fausto de Sokurov, Tabu de Miguel Gomes).

Nem todos acharão isso suficiente para apreciar o desfile de bizarrices de Reygadas, aqui sem a sublime organicidade de Luz Silenciosa nem a visceralidade de Japón. De minha parte, fiquei entre o sorriso de incredulidade e o desejo de repetir o tal personagem, fazendo uma coisa realmente radical com a minha cabeça.

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