Histórias de resistência

Mais um potente documentário traz luzes sobre o período ditatorial 1964-1985. Falo de RETRATOS DE IDENTIFICAÇÃO, realizado pela pesquisadora da UFRJ Anita Leandro a partir de fotografias e documentos dos arquivos da repressão. Ela tinha um material imenso à disposição, mas teve a sabedoria de fechar o foco em três histórias que no fundo compõem uma só. Os sobreviventes da tortura Antonio Roberto Espinosa e Reinaldo Guarany Simões são confrontados pela primeira vez com as fotos deles feitas pela polícia na prisão e na saída para o exílio. São imagens de corpos ensanguentados, nus ou deformados por espancamentos. Pertencentes a organizações clandestinas diferentes, cada um deles foi companheiro de Maria Auxiliadora Lara Barcelos – Antonio no Brasil, Reinaldo no exterior. Enquanto relembram os fatos que viveram, instigados pelas fotos, eles contam também a trajetória de Dora, uma ativista valente, culta e sedutora, que pôs fim à própria vida atirando-se debaixo de um metrô em Berlim, em 1976. O filme é de uma sobriedade e um vigor emocional impressionantes. É possível que haja alguma influência do extraordinário “48”, doc português de Susana Sousa Dias que evocava os horrores do salazarismo unicamente através de retratos de presos políticos. Os tempos da montagem, o uso expressivo da tela negra e a exploração das texturas amareladas dos documentos datilografados envolvem o espectador numa atmosfera ao mesmo tempo de perplexidade e reflexão. A finalização do filme contou com o apoio da Comissão de Anistia. Em hora de restituição da verdade no país, o material constitui uma prova indesmentível dos crimes cometidos pela ditadura.
Na semana que vem, três outros filmes sobre ecos da ditadura no Brasil e na Argentina serão exibidos em várias cidades na Mostra Marcas da Memória. Vou escrever aqui sobre eles.

A onda de protestos anticapitalistas e pró-democracia que varreu a Europa, os EUA e alguns países árabes em 2011 ganhou um panfleto cinematográfico de Tony Gatlif em 2012. INDIGNADOS recebeu o título do movimento espanhol, por sua vez inspirado no famoso ensaio Indignez-vous!, do escritor, diplomata e ativista Stéphane Hessel (1917-2013). Gatlif escalou a refugiada senegalesa Mamebetty Honoré Diallo (Betty) como personagem ficcional e fio condutor de um itinerário por vários países. Ela chega por mar à Grécia, onde convive com outros refugiados. Detida sem documentos, vai parar na França e ali testemunha o cotidiano de outros migrantes ilegais sem teto. Presa novamente, é devolvida a Atenas, de onde embarca clandestinamente para a Espanha e vai se congraçar com os manifestantes Indignados. Essa personagem sem nome e sem rumo acaba refletindo o caráter vago do movimento Occupy quando aplicado a pautas múltiplas e pouco definidas. Gatlif não estava interessado (na verdade, ele nunca está) em construir uma dramaturgia sólida. INDIGNADOS é mais uma colagem de cenas documentais e inserções ficcionais, aquecida por frases estampadas na tela, extraídas ora das faixas e cartazes das manifestações, ora do livro de Hessel. O aroma de demagogia é inevitável, na medida em que o filme ostenta em várias camadas sua solidariedade com os fracos e aponta o dedo para inimigos óbvios, como a ganância e a corrupção. As imagens podem ser líricas e metafóricas (como centenas de laranjas rolando por ruas “árabes” para simbolizar o avanço da revolução tunisiana após a auto-imolação de um vendedor de frutas), mas também podem sofrer de vaidade e autocomplacência (como uma longa dança cigana em meio a frases de luta e chuva de papéis coloridos). No cinema de Gatlif as boas intenções costumam ser maiores que a capacidade de fazê-las acontecer na tela.

4 comentários sobre “Histórias de resistência

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