Ainda não conhecia os filmes de Lisandro Alonso, tão cultuado por alguns colegas da crítica. Sabia apenas que era um cinema argentino bem diferente dos êxitos comerciais a que estamos habituados. Diferente até mesmo dos “diferentes” Sorín, Martel e Trapero. Há duas semanas, no marasmo de uma gripe, fiz um programa duplo em casa com Los Muertos (2004) e Fantasma (2006), dois filmes interligados. Como já imaginava, não é cinema para qualquer um. Exige baixar as nossas expectativas de dramaturgia e entrar na sintonia do seu ritmo meio sonambúlico.
Los Muertos acompanha um homem taciturno (o ator “natural” Argentino Vargas) em seus últimos momentos na prisão e primeiros dias de liberdade. A caminho de reencontrar sua filha, de carona e de barco até a paupérrima região de Lavalle, ele faz compras, sacia-se com uma prostituta, alimenta-se com favos de mel, degola e destripa um cabrito diante da câmera. É um Homem da Natureza em seu sentido mais primal. Consta que ele cumpria pena por ter matado seus dois irmãos (o que é evocado ambiguamente no prólogo), mas nada é confirmado para nós. Outros episódios vão deixar em aberto a possibilidade de Vargas ser um bruto inocente ou um monstro absoluto.
Um filme de mistério, portanto, mas sem os cânones do gênero. O mistério se instala entre as longas tomadas em tempo real e as súbitas elipses ou afastamentos da câmera. Os enquadramentos são sempre sugestivos e intrigantes. O estilo combina os planos imersivos de Apichatpong Weerasethakul, as panorâmicas ritualísticas de Jia Zhang-ke e as deambulações de Tsai Ming-liang. Ou seja, Oriente total.
Fantasma, aliás, é filme parente de Goodbye, Dragon Inn, de Ming-liang. Passa-se no interior do Gran Teatro San Martin, em Buenos Aires, no dia em que a sala de cinema vai exibir a estreia de Los Muertos. Argentino Vargas comparece para uma sessão-fantasma sem público. Três funcionários do complexo circulam por corredores, escadas e banheiros vazios, praticamente desconectados entre si. Não há a linearidade do outro filme, determinada pela estrada e pelo rio. Aqui estamos num labirinto. Passamos da Natureza à Cultura, pois agora a rudeza e os enigmas de Los Muertos se tornaram apenas um filme numa tela, exibido para quase ninguém.
Se Los Muertos me instigou por seus momentos muito plenos e suas lacunas, Fantasma me pareceu apenas um exercício de diletantismo e auto-indulgência.
Lisandro Alonso esteve de novo em voga este ano com seu novo filme, Jauja. Dessa vez, um drama de época passado na Patagônia em fins do século XIX. Ganhou o Prêmio da Crítica da mostra Un Certain Regard, em Cannes, e melhor ator (Viggo Mortensen) no Prêmio Fênix iberoamericano. Uma hora dessas encaro esse e outros do autor. Por ora, está de bom tamanho.
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