Rastros de ossos e estrelas

Um dos mais belos documentários dos últimos tempos ganha, enfim, direito a um lançamento em sala do Rio, no Instituto Moreira Salles. Nostalgia da Luz é uma meditação cinematográfica de raro fôlego estético e político.

Patricio Guzmán, o extraordinário cronista da queda de Allende (Batalha do Chile, Salvador Allende) retorna ao tema por um viés surpreendente, que de certa forma difere da abordagem mais militante e arquivística dos filmes anteriores. Nostalgia da Luz pertence à estirpe dos ensaios poéticos, mas sem nada perder do gume e da capacidade de articulação dos outros trabalhos.

O filme parte de uma aproximação vertiginosa entre três atividades desenvolvidas no Deserto de Atacama. Num observatório de alta tecnologia, astrônomos perscrutam as estrelas em busca das origens do universo. Nos canteiros arqueológicos, geólogos estudam os traços deixados pela pré-História. Ao mesmo tempo, um grupo de mulheres continua a esquadrinhar o solo à procura de restos mortais dos seus filhos e parentes mortos pela ditadura de Pinochet e enterrados no deserto (as “novas Antígonas”, como bem caracterizou o crítico Luiz Fernando Gallego).

O roteiro de Guzmán, baseado em depoimentos e num comovente texto de narração, opera uma série de nexos entre o micro e o macro, a curiosidade científica e a necessidade de esclarecer a História, as perguntas sobre a nossa condição de seres viventes e o interesse por transformar o luto em reafirmação da memória e da vida.

Tudo isso poderia soar meramente retórico se não estivesse conduzido por uma sincera aposta na reflexão e uma legítima busca de sentidos a partir daquela incrível coincidência no livro da Natureza que é o Atacama. Poderia ser um filme puramente discursivo se não fosse construído sobretudo através do poder das imagens. É a partir delas que Guzmán encontra as conexões entre estrelas e ossos (o cálcio que lhes é comum), cúpulas e crânios, cosmos e bolas de gude, mães e pesquisadores. Vestígios de passados tão distantes entre si mas que ali se tocam no desejo humano de cruzar a linha tênue do presente, entender a si mesmo e secar feridas.

4 comentários sobre “Rastros de ossos e estrelas

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  2. Que beleza de texto! Quem sabe agora possa (eu e outros…) descobrir Patricio Guzmán aqui em SP em tempos de CNV. E talvez nossos documentaristas (boa parte) tem acertado e muito com os musicais… enquanto que os hermanos com os políticos, ou mesmo via docudramas.

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