Passaram despercebidos em 2018 dois filmes da produtora Terratreme, uma das mais criativas de Portugal atualmente. Dali saíram os ótimos A Fábrica de Nada, Djon África e as coproduções com o Brasil A Cidade onde Envelheço e Era uma Vez Brasília. O magnetizante e culto documentário CAMPO contrasta fortemente com a rústica ficção ALVA, ambos disponíveis na plataforma Looke.
O campo da vida e da morte
Na mitologia romana, Marte era o deus da guerra e também da agricultura. Dessa contradição partiu Tiago Hespanha para arquitetar seu interessantíssimo CAMPO, um documentário poético-impressionista sobre um certo local nas cercanias de Alcochete, perto de Lisboa. Ali fica um centro de treinamento da Força Aérea portuguesa, composto de um campo de tiro e vasta área (a maior da Europa) dedicada ao ensaio de operações fictícias de guerra. O lugar é também uma reserva florestal com fauna diversificada e criações de ovelhas, além de ponto de observação astronômica.
O realizador – que produziu o excepcional A Fábrica de Nada – tomou essas dicotomias como mote para um filme intelectualmente elaborado, que recorre a textos de Kafka, Carl Sagan, Alberto Caeiro, Iuri Gagarin e excertos de mitologia antiga. O fio condutor é uma narração fabular, oralizada pelo próprio diretor, que começa com o Gênesis. O pouso de paraquedistas representa o sopro de vida insuflado sobre a Terra. E assim o filme prossegue, sempre associando uma narrativa mitológica ao cotidiano daquele pedaço de Portugal.
O fogo franqueado por Prometeu aos homens é fonte tanto de energia e conhecimento, quanto de destruição. O campo é agrícola e bélico, ou seja, lugar onde se cultivam a vida e a morte. Em Alcochete, os soldados se esmeram nos combates de mentirinha e os snipers aprimoram sua mira. Ao mesmo tempo, apicultores cuidam de colmeias, ornitólogos observam pássaros, biólogos estudam sapos, pastores zelam por seus rebanhos, agricultores derrubam árvores, pesquisadores trocam especulações ao redor de um telescópio e um jovem pianista compõe sob a inspiração dos tiros e explosões que fazem tremer os objetos de sua casa.
A influência de Patricio Guzmán e seu Nostalgia da Luz me parece evidente na forma como Tiago Hespanha relaciona o micro e o macro, o local e o universal, o prosaicamente terreno e a meditação filosófica, o imanente e o transcendente. Uma diferença, porém, é fundamental: Tiago Hespanha propôs algumas encenações aos militares e chegou a incluir uma cena (o soldado ferido) do filme de ficção Cartas da Guerra, de Ivo M. Ferreira. Realidade e representação, portanto, são mais uma dicotomia em jogo no filme.
O tom reflexivo é amparado por uma fotografia excepcional, capaz de conferir uma aura quase sobrenatural aos cenários naturais. CAMPO é o tipo de filme que requer um olhar sem ansiedade e sem expectativas de documentário informativo. Em compensação, nos oferece uma das mais belas reflexões audiovisuais da temporada.
Leiam aqui uma entrevista com o diretor ao jornal online Observador.
Animal em fuga
A experiência que o diretor Ico Costa nos propõe em ALVA é bem diversa do que vemos em Campo. A ideia aqui é acompanharmos a jornada de um homem com informações mínimas sobre aquilo que o move. Ao contrário da riqueza conceitual do outro filme, temos a imersão rústica no silêncio de um personagem opaco.
Henrique Bonacho, ator não profissional descoberto num curta semidocumental de Susana Nobre, usa seu próprio nome no papel de um homem solitário, separado da mulher e das filhas, que vive sozinho pastoreando ovelhas nos arredores de uma aldeia portuguesa por onde passa o rio Alva, que dá título ao filme. Um dia Henrique vai à cidade com um rifle e comete um crime, cuja explicação só virá na última sequência. A partir dali, embrenha-se na mata sem rumo ou objetivo.
A câmera 16mm acompanha seus passos lentos, suas quedas e sua busca por sobrevivência. Na maior parte do tempo, está a colher frutas silvestres para comer. Aos poucos, cresce a impressão de que estamos seguindo não um simples eremita, mas um animal em fuga, movido somente pelos instintos. Não há diálogos, nem qualquer comunicação de pensamento. A expressão inexcrutável de Henrique não admite identificação nem repulsa. Estamos a sós com um homem bruto e uma câmera que o rodeia como um cão.
Nesse naturalismo radical, poucos momentos atingem uma dramaticidade específica, como o roubo de uma ovelha, uma intenção suicida ou a decisão final (e surpreendente) de Henrique. De resto, é um filme sem vida que não ficou à altura de uma possível influência do argentino Lisandro Alonso de Los Muertos e A Liberdade.