Malick além da linha da canastrice autoral

Em algum momento da concepção de KNIGHT OF CUPS (não lançado nos cinemas brasileiros), Terrence Malick deve ter pretendido contar uma história, ou pelo menos articular um pensamento sobre seu personagem central. De vez em quando a gente percebe que, pelo menos, há um personagem: um suposto escritor (Christian Bale) vagando pela nata de Los Angeles em busca de amor, redenção e justificativa para uma vida de dissipações. A gente vê que ele tem um pai (Brian Dennehy, o ator de “A Barriga do Arquiteto”) e um irmão, cujos papéis têm importância na sua (de)formação psicológica.

Por alguma razão, entre a filmagem e a montagem, Malick parece ter desistido de fazer sentido. Auxiliado por quatro diferentes montadores, ele desmontou o filme inteiro para dar conta do fluxo de consciência de um protagonista fragmentado e perdido. Os diálogos foram quase totalmente suprimidos e substituídos por camadas de narração em off – uma das quais, falada por Ben Kingsley, sugere a voz de um outro pai fora de cena, ou a voz de Deus, se levamos em conta a tendência espiritualizante do Malick recente. Atrizes como Cate Blanchett e Natalie Portman rolam na tela sem ter o que fazer, quando não soam constrangedoramente deslocadas, como Natalie na sua cena de lágrimas.

Assim o grande diretor de “Terra de Ninguém” e “Cinzas no Paraíso”, à medida que tenta se elevar para além do mundo concreto, vai decaindo cada vez mais na canastrice autoral. Lá estão as tomadas inclinadas em direção ao céu, o sol de fim de tarde fazendo refrações na lente, as distorções de perspectiva e a errância espacial que caracterizam seu estilo desde “A Árvore da Vida” e já se tornaram por demais enjoativos. Supostamente, seria uma “peregrinação” regida pelas cartas do tarô, mas o absconso escritor mais parece flanar aleatoriamente pelo Google Street View. De um edifício corporativo para um deserto, dali para um quarto de hotel, um estúdio de Hollywood, uma festa chique, um cassino de Las Vegas, uma praia, uma piscina, um jardim japonês, uma exposição, uma rua coalhada de sem-tetos, uma sessão de fotos, um trecho do Vale da Morte…

Enquanto isso a narração desfia perguntas metafísicas cujas respostas vêm somente sob a forma de mulheres nuas de salto alto e óculos escuros, locações extra-luxuosas e outras extravagâncias visuais. Nada, porém, confere um sopro de vida a essa experimentação tão diletante quanto solene, flambada ao som de músicas clássicas “irresistiveis”. Malick é um autor que se rarefece a cada filme. Periga virar um esteta do esoterismo. Vejamos como será “Song to Song”, seu novo projeto definido como “uma história de amor moderna ambientada na cena musical de Austin, Texas, em que dois casais perseguem o sucesso numa paisagem de rock’n’roll, sedução e traição”.

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